Parece não ser só no futebol que os argentinos superam o Brasil neste momento. Também em outras áreas consideravelmente mais importantes como a justiça e a equidade. O primeiro lugar na competição pela Taça Libertadores, maior torneio de futebol da América Latina, foi uma vitória respeitada e merecida, garantida já no início do primeiro tempo pelo jogador Di Maria, que fez o gol da vitória. Agora, no entanto, é já na prorrogação do segundo tempo que as mulheres argentinas trazem sua pátria para a frente do debate, após lavrarem um tento mais que esperado e merecido por parte da República Rio-Platense.
Desde o início desta semana, a Argentina passou a considerar o cuidado materno como trabalho, na tentativa de reparar parte das desigualdades estruturais que as mulheres sofrem e enfrentam ao longo da vida e derivam, muitas vezes, da sobrecarga de tarefas domésticas somadas às profissionais. Essa situação é ainda mais desafiante e injusta por acontecer em um mercado de trabalho que já é muito mais difícil para as mulheres.
Agora a Argentina regularizou a legislação, de forma que os 44% das mulheres em idade de aposentadoria que não têm acesso ao benefício possam finalmente dele usufruir. A medida legal alcançará cerca de 155 mil mulheres do país com 60 anos ou mais, que saíram do mercado de trabalho para se dedicarem ao cuidado dos filhos. Poderão somar ao tempo de contribuição da previdência aquelas que estiverem nos seguintes casos: um ano de contribuição por filho como regra geral; dois anos por filho em caso de adoção de criança ou adolescente menor de idade; dois anos para as mães de filho deficiente e três anos caso haja recebido o benefício mensal do governo destinado a pais ou responsáveis que estejam desempregados ou sejam de extração social de baixa renda.
O Brasil previa na sua legislação a inclusão da licença-maternidade como tempo de contribuição para a Previdência. A Argentina incorpora agora esse direito em sua legislação. Finalmente, as mães veem as políticas públicas indo ao encontro da valorização da maternidade.
Sente-se no que acontece na Argentina o eco das palavras de um argentino que hoje se encontra longe de sua terra natal, em Roma: Jorge Mario Bergoglio, o Papa Francisco. Desde que foi eleito papa, Francisco repete incansavelmente sua preocupação com os idosos, os anciãos, aqueles que com suas vidas, seu trabalho, sua dedicação construíram o mundo em que vivemos e muitas vezes, chegados à idade avançada, são vistos como inúteis e como tal, marginalizados e descartados, vendo negada sua importância, seu valor, seus direitos plenos.
Bem vê o Papa – e parece que seus conterrâneos igualmente – que uma sociedade que não pensa nos idosos perdeu sua ética. Uma sociedade onde a vida é possível e floresce plenamente é aquela que reconhece o que deve aos idosos, valoriza sua memória e aporte, e reafirma seu valor quando chegam à idade em que se encontram vulneráveis e mais frágeis.
Em se tratando das mulheres, essa vulnerabilidade e fragilidade são mais fortes e evidentes. Elas constituem boa parte das pessoas que se encontram em situação de pobreza no mundo. Daí a expressão “feminização da pobreza”, significando aquelas que são duplamente pobres: por viver em dificuldade econômica e por seu gênero feminino. Juntamente com as mulheres estão as crianças, os filhos que só contam com elas para sobreviver a cada dia. Como elas, essas crianças são vítimas da violência e da injustiça que caracteriza nossas sociedades.
Hoje vemos que a maternidade e a natalidade estão em decréscimo nas sociedades mais desenvolvidas. Temos a tendência de culpar o secularismo, o relativismo e quantos mais “ismos” haja. E, em parte, isso pode ser verdade. Esquecemo-nos, no entanto, que a quase total ausência de políticas públicas que auxiliem a mulher a levar adiante sua maternidade, com um mínimo de garantia de poder cuidar plenamente de seus filhos como o requer a primeira infância, tem igualmente uma importante parcela de responsabilidade na ausência de fecundidade em nossas sociedades.
Muitas vezes a mulher que se torna mãe precisa afastar-se momentaneamente do trabalho, para dedicar-se plenamente a este cuidado. E em uma sociedade que não contempla os direitos da maternidade, é perfeitamente compreensível que as mulheres temam embarcar na aventura para a qual seus corpos são criados – a de ser habitadas pelo outro, a de dar à luz outro ser humano – sem condições ou garantias de sobreviver com um mínimo de dignidade pelo afastamento do trabalho que isso implicará.
As mulheres agradecem às irmãs argentinas. Agradecemos todos e todas. É urgente resgatar a importância do cuidado em um mundo que privilegiou quase que unicamente a eficácia e a produção rentáveis e que por isso está à beira do colapso. E entre os diversos cuidados que a vida em todas as suas formas requer, certamente o materno é um dos mais belos e mais exigentes. E por isso deve ser olhado com especial carinho e consideração.
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.