A contaminação do tecido da cultura pelo vício dos privilégios é preocupante. A busca pela acumulação de vantagens de todo o tipo é uma síndrome que se generaliza. Talvez se busque mais regalias do que o honroso pódio conquistado por ações competentes, em benefício da coletividade. E esse gosto pelos privilégios contraria o princípio do altruísmo. Por isso, torna-se oportuno questionar: não será esse um fator determinante na mediocridade que afeta e corrói a credibilidade da classe política? Trata-se, certamente, de problema que incide sobre a vida e a produtividade das pessoas, em qualquer segmento da sociedade. Consequentemente, há um obscurecimento do respeito aos direitos intocáveis dos cidadãos todos, pois o que se defende e o que se busca são os privilégios.

Nessa direção, muito do que se faz ou se promove, inclusive com a articulação de diferentes segmentos, têm como horizonte o aumento de regalias, erroneamente compreendido como “conquista de direitos”. Ao priorizar a patológica busca por vantagens, a organização sociopolítica fica sempre emoldurada por disputas insanas. Inclusive porque se gera uma insaciabilidade – privilégios fazem crescer, principalmente, o gosto por mais privilégios. É como uma droga que causa dependência, corroendo o tecido da cultura. Tudo tende a funcionar a partir do objetivo de se conquistar mais benesses. Oportuno é pensar, por exemplo, o que ocorre nas casas de representação do povo – Câmaras, Assembleias e Congresso Nacional. Na contramão do dever de representar toda a coletividade, esses ambientes muitas vezes funcionam a serviço de pequenos segmentos privilegiados. A complexidade e artimanha desses funcionamentos têm força até para cooptar igrejas, pela representação de bancadas. A luta desarvorada por privilégios causa confusão e instala um caos nas relações sociais, alimenta revoltas e mesquinhez, insufla a violência.

A representação legítima é a que se fundamenta na defesa da cidadania e do bem comum. E nobres são as ações que buscam garantir o incondicional respeito à dignidade de todos. Distanciar-se dessa meta conduz instituições e segmentos ao fracasso. Gera, na sociedade, situações críticas de pobreza e de dificuldades que parecem insuperáveis. Entre as nefastas consequências estão a morosidade e a perda de capacidade para agir. Os indivíduos não aproveitam de todo o seu potencial e, por isso, não conseguem fazer o mínimo esperado. Essa postura é contramão da alegria altruísta de poder oferecer mais para o bem comum. Ameaça o sentido de “pertença”- importante para que cada pessoa se comprometa a ajudar no desenvolvimento da sociedade. Lamentavelmente, muitos indivíduos, olhando apenas interesses pessoais, antes de assumir uma tarefa, se fazem uma pergunta rasteira: “O que se ganha com isso?” Trata-se de questionamento que expõe as anomalias produzidas pela cultura dos privilégios – alimento para a mesquinhez que compromete o núcleo da honra.

Esse núcleo se constitui e se fortalece pela hombridade e gosto de ser – em tudo o que faz e fala – digno de credibilidade. Trocar privilégios por credibilidade é vetor com força para conduzir a sociedade rumo a outras direções, tornando-a mais igualitária, com dinâmicas orientadas pelos parâmetros da justiça e da solidariedade. A partir dessa troca, podem ser superadas as vergonhosas e gritantes desigualdades sociais entre grupos, classes e pessoas. Em vez de regalias, deve-se buscar o necessário e a garantia do respeito à dignidade de toda pessoa. Isso se faz cultivando o gosto pelas dinâmicas que geram oportunidades iguais para todos.

A opção por investir na conquista e manutenção de vantagens é, certamente, um resquício de colonialismos. Para romper com essas dinâmicas de privilégios é necessário repensar funcionamentos, cortar gastos. Esse caminho exige que os próprios privilegiados repensem suas comodidades pessoais. Trata-se de verdadeira conversão, com profunda mudança de hábitos, que abre caminho para uma civilização diferente. É preciso pensar no caráter irreversível das desumanizações que são produzidas pelas dinâmicas das regalias. Torna-se fundamental erguer a bandeira da credibilidade nos muitos ambientes. Isso significa cultivar o gosto de agir com honestidade e de trabalhar em favor do bem comum. A reversão dos males produzidos pela cultura dos privilégios, que se desdobra em outros prejuízos – uma lista interminável -, requer formação moral e cidadã de cada pessoa, cultivando, no lugar da ânsia por privilégios, o objetivo de ser merecedor de credibilidade em tudo o que faz e fala.

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).