“Hoje encontro muitas pessoas,
de todo o mundo e de diversas religiões.
Entre elas, estão os anjos com os quais
podemos nos reunir aqui na terra”.
(Cardeal Martini)

Ao ler hoje pela manhã o IHU notícias (27/06/2012), deparei-me com a informação de que o grande cardeal Martini se despedia de sua coluna no jornal italiano Corriere dela Sera. Dizia que chegara o momento em que, por razões da idade e da doença, deveria se retirar de suas atividades e empenhos para preparar-se para o encontro decisivo com o Mistério de Deus. Fiquei, de certa forma, entristecido, pois ele sempre foi para mim um fator de alegria, incentivo e esperança na luta em favor de uma Igreja mais fraterna e solidária. Nesses “tempos difíceis”, sua voz serena, corajosa e audaz vai nos fazer muita falta. Em todo o meu itinerário teológico pude acompanhar atentamente suas produções, seus sermões e suas lindas intervenções nos campos da pastoral e da vida social. Foi sempre uma alegria renovada entrar em contato com suas instigantes provocações. É na verdade, um fiel seguidor de uma Igreja primaveril, um autêntico “amigo de Deus”, e são eles, como tão bem indica Simone Weil, que nos facultam o exercício singelo da manutenção do olhar fixado intensamente em Deus.

O cardeal Martini foi aquele que sempre esteve nos meus sonhos em favor de uma Igreja mais profética, solidária e aberta. Nos últimos dois conclaves, foi por ele que o meu coração bateu mais forte. Talvez a figura mais nobre que um cargo tão complexo, exigente e difícil, poderia fazer jus. O cardeal Martini, jesuíta de ternura e vigor, foi durante muitos anos – de 1980 a 2002 -, arcebispo de Milão, a maior diocese do mundo. Ali atuou de forma impressionante, deixando uma marca que não poderá jamais ser esquecida. É também um dos mais importantes biblistas que temos.

Sua reflexão sobre Jesus é apaixonante. A forma como nos confronta com Jesus de Nazaré é singular e provocadora. Como sinalizou Georg Sporschill, ele nos apresenta Jesus em perspectiva distinta à apresentada por papa Bento XVI em seu livro sobre o itinerante de Nazaré. A partir de sua visada, o Jesus que nos vem revelado “é o amigo dos publicanos e pecadores. Ele escuta a pergunta dos jovens. Ele provoca inquietações. Ele luta conosco contra as injustiças”. Foi essa perspectiva que pude ver, com grande alegria, no seu livro sobre O itinerário espiritual dos doze (1981), onde aborda o Evangelho de Marcos. Com essa obra ele nos ajuda a rever, refletir e pensar sobre a nossa caminhada interior com base no itinerário espiritual dos doze discípulos.

Nos ajuda a trabalhar o difícil confronto interior em favor da decisão de dar prosseguimento na história ao caminho de Jesus. Assim como os discípulos, nós também temos dificuldades de compreender os desafios da missão e de ver com clareza o horizonte a seguir. O conselho que vem do mestre Martini é simples: basta sair de uma situação marcada pelo orgulho e suficiência e deixar-se habitar por atitude de humildade, de “ignorância”, com a disposição acesa e atenta da audição. Sublinha que esta deveria ser a atitude fundamental de quem se coloca diante do Mistério de Deus, para poder ouvir o que Ele nos quer comunicar. Nada mais importante, sublinha, do que “olhar com atenção”. Mesmo que não se consiga explicar o que há de belo no mundo, e no outro, “a admiração diante da beleza pode me levar a Deus”.

Outro traço que sempre percebi em suas reflexões foi o da abertura ao outro, ao seu mistério indiscernível. Em livro publicado em 2000, Sobre o corpo, o cardeal Martini trata questões difíceis como a doença e o limite. Indica que a doença não é um incidente fortuito, mas nos coloca irremediavelmente diante de limites bem precisos. Desvela ainda algo que está “escondido” em nós mesmo quando nos sentimos saudáveis, mas que aparece um dia, com sua patente realidade, fazendo emergir a verdade de nossa limitação e pobreza. É esse mesmo corpo que coloca para nós, de forma viva, a questão do outro e o desafio imprescindível da relação. Diz Martini: “O outro é, porém, um mistério que escapa a qualquer analogia e redução de semelhança; se quero possuí-lo não é mais ´outro`, e permaneço só, sem nenhum outro”. Não há lugar para o belo Narciso, que se afoga em sua própria imagem e reflexo. Sublinha ainda que esse amor aos outros nunca o afastou de sua comunidade. Ao contrário, diz ele: “Quanto mais convivo com os outros, tanto mais amo a Igreja”.

Um dos maiores desafios assumidos por Martini em sua trajetória foi a defesa desse outro, e sempre com base em Jesus de Nazaré. No livro Diálogos noturnos em Jerusalém (2008), trata da importância de levar a sério a abertura e universalidade que envolve a expressão “católica”. E o caminho que aponta é o seguimento de Jesus. Foi ele que “tornou visível o amor de Deus por meio de sua vida e de suas palavras”. E o que caracteriza esse amor é sua proximidade com os outros, sobretudo os mais necessitados e pobres. Foi alguém que “optou pela vida itinerante e, assim, estar disponível para todos e não construir muros ao seu redor.
Jesus foi ao encontro dos estranhos. E o que é mais importante: era capaz de difundir seu amor”. Como assinala Martini, é o nosso grande mestre nessa abertura aos estranhos.

Levando a sério esse desafio, Martini dedicou-se por muitos anos em Milão ao diálogo com os muçulmanos. Um de seus lindos trabalhos a respeito ganhou grande notoriedade: “Nós e o Islã – da acolhida ao diálogo”. Trata-se de um discurso que ele proferiu na vigília do dia de Santo Ambrósio, em dezembro de 1990. Reconhece em seu discurso os grandes valores religiosos e morais que marcam a tradição islâmica, e que tanto ajudaram “centenas de milhões de homens a prestar a Deus um culto honesto e sincero, bem como a praticar a justiça”. É no respeito a tal dignidade que os cristãos são convocados ao diálogo com os muçulmanos, e na sua dinâmica poder refletir e aprender sobre sua “forte experiência religiosa”, destinada a restituir a Deus, com gratuidade, um mundo a ele intimamente vinculado.

Levou também o diálogo ao pórtico dos não-crentes. Nos debates com Umberto Eco, registrados no livro Em que crêem os que não crêem (1999), trata com grande honestidade e seriedade essa questão. O que está em jogo, fundamentalmente, é a questão ética, o lugar da ética, “no qual se decide o futuro meta-histórico da aventura humana”. Partilha com Eco da idéia de uma esperança comum que irmana crentes e não-crentes, que transparece sobretudo na prática. Diz Martini:

“É possível ver crentes e não crentes vivendo o presente, dando-lhe sentido e empenhando-se com responsabilidade. Isto é particularmente visível quando alguém se coloca, gratuitamente, por sua conta e risco, a serviço de valores elevados, sem nenhuma retribuição visível. Quer dizer, portanto, que existe um húmus profundo que crentes e não-crentes, pensantes e responsáveis, alcançam, sem que, no entanto, consigam dar-lhe um mesmo nome”.

Martini reconhece o valor e a dignidade da ação ética de muitas pessoas, com “elevado altruísmo”, sem que estejam animadas por um fundamento transcendente em sua ação.

Sobre o seu sonho de Igreja, Martini sublinha:

“Antigamente eu tinha sonhos em relação à Igreja. Sonhos de uma Igreja que seguisse seu caminho na pobreza e na humildade, de uma Igreja que não dependesse dos poderes do mundo (…). Com uma Igreja que desse lugar às pessoas que pensam o futuro. Com uma Igreja que encorajasse especialmente àqueles que se sentem sozinhos ou pecadores. Eu sonhava com uma Igreja jovem”.

Em seus colóquios de Jerusalém, na ocasião, com avançados 75 anos, revelou que esses sonhos tinham se diluído e que agora rezava pela Igreja. Mas ainda vigorava em seu peito o grande sonho de Teilhard, que via “o mundo caminhar em direção à grande meta, onde Deus será tudo em todas as coisas”.
Em sua última coluna, esse grande cardeal de Milão, conhecedor do segredo dos corações e do mistério das distintas formas de fé, responde a uma última questão, extremamente difícil, levantada por Francesco Rizzo, que havia perdido o seu filho de 10 anos. Na sua carta, o desencantado pai pedia uma palavra de conforto para poder voltar a viver. E com a resposta de Martini, concluo essa minha breve homenagem a esse grande cristão:

“Caro Franco, não há palavras verdadeiras de conforto diante de uma dor tão grande, talvez a maior dor para um ser humano. Eu também não sei lhe indicar caminhos precisos. Posso lhe dizer que rezo por você para que seja Jesus, o Filho, que lhe indique o caminho. Mas certamente não será logo, porque dores tão fortes tiram a força, a visão, a audição e ferem até a nossa força fundamental que é a coragem de enfrentar qualquer acontecimento”.

 

Faustino Teixeira
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.