A folhinha pendurada na geladeira me avisa: amanhã será abril.
O dia primeiro de cada mês traz sempre novidades, além das contas a pagar. Para mim, mais que uma troca no calendário, essa passagem frenética, inexorável, do tempo, é convite à oração. Ainda mais na semana, circunstâncias e estação que vivemos.
Já flori em primaveras, saboreei verões, enfrentei invernos, hoje sou outono, a estação do ano que mais se parece comigo. Coisas da idade madura. Maduríssima!
Agora, nesta semana que se quer santa, rezo minhas perplexidades.
Olho para a folhinha, minha companheira fiel, pendurada o ano inteiro naquele mesmo lugar até o dia 31 de dezembro, quando será descartada em nome de um ano que se quer novo, e que trará consigo uma nova folhinha.
Olho aquela fila de dias encadeados, formando semanas que compõem meses contando a história do ano que se arrastou no marasmo trágico da pandemia.
Dou um suspiro profundo e penso: vivemos no tempo e buscamos eternidades. Complicado, isso. Estarmos dentro de limites palpáveis, de espaços geograficamente delimitados e cronologicamente datados e, ao mesmo tempo, estendermos nosso olhar para além de tudo o que nos cerca e confina.
Lembro os que perdi. Lembro o que todos temos perdido. Penso nas lágrimas solitárias correndo dentro e fora de UTIs, quartos e enfermarias. Penso nos sepultamentos sem despedida. No abraço vazio, no beijo que ficou travado na boca ressequida.
O real me deprime, o coração pede uma prece que me anime.
Algo em mim sussurra; somos mais, somos humanos, mas transcendemos. É nossa pulsão e desejo. Buscar o Mais vivendo no menos, ou, frequentemente, no mais ou menos. Mas o Mais virá…
É madrugada e a oração me espera. Folheio minha Bíblia até encontrar o que procuro. Um dos mais belos textos que conheço. O salmo 139 (138).
Reflito que só mesmo o pressentir da eternidade é capaz de fazer o coração humano encontrar palavras capazes de atravessar os séculos, os milênios, sem perder o frescor do momento em que nasceram.
O texto me faz menino… e imagino:
Uma lamparina de óleo ilumina toscamente uma pequena e solitária tenda, num pequeno oásis, no deserto. Ao redor dela um rebanho de ovelhas dorme. O mesmo céu que vemos hoje coberto pela fuligem do aquecimento global estende, naquela escuridão ainda límpida e virgem, seu tapete de estrelas.
O pastor das ovelhas, sentado à porta da tenda, contempla o cenário à sua volta. As brasas sobreviventes de uma pequena fogueira criam também estrelas que sobem em fagulhas, da terra, para se encontrar com as do céu.
Um outro cenário, no seu interior, vai sendo tocado e movido. Seu coração segue o itinerário das estrelas e se mistura às constelações, lá no alto. Sentimentos cruzam seu espírito como o tremeluzir rápido e surpreendente de uma estrela cadente ou da brasa incandescente. Os pequenos pontos de luz vão se diluindo, aos poucos, na ainda escuridão. Um brilho de alvorada surge em seus olhos.
Suas mãos trêmulas pegam um rolo de pergaminho e vão gravando, lentamente, as palavras que transbordam de sua luminescência interior:
“Senhor, meu Deus, me conheces como ninguém. Olhas o meu coração e sabes tudo o que se passa nele. De longe penetrais no meu pensamento. Quando caminho, quando paro, se sento ou se levanto, estás sempre ao meu lado. Não sou, de forma nenhuma, um estranho para ti. Antes que eu diga qualquer coisa já conheces meu pensamento. Estou envolvido por ti como se estivesse na palma da tua mão. Não consigo compreender este maravilhoso mistério, mas como ignorar a tua presença? Se eu subir aos céus, lá te encontrarei. Se mergulhar no abismo mais profundo, também lá estás.
Se eu conseguisse voar nas asas da aurora e atravessasse o horizonte mais longínquo, a tua mão estaria ao meu lado, amiga e companheira. Se me perdesse na escuridão, se a luz se transformasse em trevas à minha volta, teu olhar me encontraria, pois, para ti, a noite é clara como o dia. No silêncio do ventre de minha mãe, tu me teceste, célula por célula. Como tudo à minha volta, sou fruto do teu Amor. Eu te agradeço tanta ternura e tanto carinho. Só uma coisa preciso pedir, Senhor: olha o fundo do meu coração. Experimenta os meus sentimentos. Toca a minha alma. Vê se há algum sinal de egoísmo em minha vida. Toma-me em tuas mãos com doçura e mostra-me o caminho do teu Amor, pela vida afora, através do cotidiano até a Eternidade.
Assim seja”.
Fecho os olhos e vejo.
À minha frente a folhinha continua muda, silenciosa.
Em meu coração, ressoam ainda, num murmúrio, as palavras do salmo, derramadas da noite dos tempos.
Tempo e lugar se diluem.
Amanhece em mim.
Deus é e está.
Eduardo Machado
Educador, Escritor, apaixonado pelo ser humano, um católico que tenta, cada dia mais, tornar-se cristão.