Um dos problemas da língua inglesa* é que temos relativamente poucas palavras para descrever relações familiares: pai, mãe, filho, filha, irmão, irmã, neto, neta, tia, tio, primo – às vezes, com o prefixo “meio” ou o sufixo “adotivo”.
O acesso generalizado a computadores só integra o nosso cotidiano há umas poucas décadas, mas mesmo assim a profusão de termos decorrentes disso torna fácil perceber a onipresença dessa mudança: e-mail, pdf, smartphone, whats, googlar, emoticons e assim por diante. Nós incorporamos esse novo vocabulário de forma tão profundamente que já é comum empregarmos alguns desses termos como metáforas: falamos em Internet discada para descrever um processo lento ou comentamos como alguém é um meme da vida real.
Este turbilhão linguístico reflete como mudanças amplas na vida cotidiana é prontamente assimilada pelo discurso. Quando falamos em família, contudo, ainda usamos um léxico inflexível. Por consequência, ao nos referimos a novos modos de parentesco, a tendência é apelarmos às poucas formas já existentes em busca de símiles inadequados. Acabamos limitando a crescente diversidade das famílias à sua maior ou menor capacidade de imitar estruturas tradicionais.
É comum perguntarem ao meu marido ou a mim se a mulher que serviu de barriga-de-aluguel para o nosso filho George é “uma espécie de tia”. Perguntam-nos qual dos dois é a “mãe na prática”. Um casal de amigos, cujos filhos adotivos mantêm contato com seus pais biológicos, precisam responder se estes são “uma espécie de primo” para eles. Pais e mães solteiros precisam explicar com frequência como é ser “pai e mãe ao mesmo tempo”.
As pessoas empregam esse vocabulário de forma literal e obtusa. Não raro, perguntam às crianças sobre seus “pais de verdade”, fazendo eco à concepção de que a natureza prevalece sobre a criação. De forma semelhante, as pessoas perguntam a mim e ao meu marido qual de nós dois é o “pai de verdade” do nosso filho. Qual o termo para designar minha relação com a barriga-de-aluguel do meu filho ou com a esposa dela, ambas membros muito amados de nossa família – até porque ela também é a mãe dos filhos biológicos de meu marido? Ela não é exatamente uma mãe para o meu filho, porque não se envolveu na criação, mas tampouco é uma amiga especial. A palavra “amiga” é vaga demais para descrever o que somos, sobretudo na era do Facebook.
Quando os filhos biológicos de meu marido, Oliver e Lucy, aprenderam a falar, eles chamavam sua mãe biológica de Mãe e a mãe de criação de Mamãe. Então surgiu a questão de como deveriam chamar o meu marido, para deixar claro que Mãe e Mamãe eram as responsáveis pela criação, mas John tinha uma relação especial com elas. John sugeriu Pai Doador, mas eles não sabiam o que “doador” significava, então chamavam ele de “Pai do Amor”. Hoje eles chamam meu marido de Pai e eu de Papai, e o nosso filho (em termos práticos e legais) chama elas de Mãe e Mamãe.
Sempre que descrevo minha estrutura familiar, preciso de no mínimo um parágrafo para esmiuçar essas relações complexas, pois não existem palavras adequadas. Nossa relação com Oliver e Lucy não é menos amorosa que a nossa relação com George, mas ela implica diferentes responsabilidades e níveis de contato.
Uma amiga, que cria sua filha na condição de mãe solteira, conheceu uma mulher que utilizou o mesmo doador de esperma. Elas não são amigas próximas. Os filhos dessas mulheres devem chamar um ao outro de irmão? Caso contrário, como devem se chamar?
Quando Jennifer Finney Boylan se assumiu transgênero, seus filhos sentiram que não podiam mais chamá-la de pai, mas não conseguiam chamá-la de mãe porque o “cargo” já era ocupado por sua mãe. Por isso, passaram a chamá-la de Papãe.
Entrevistei recentemente um homem que queria ter filhos, mas era soropositivo. Ele não tinha dinheiro para bancar uma lavagem de esperma (processo de separação entre o esperma e o sêmen portador do vírus), e por isso pediu a um amigo próximo que doasse seu esperma. Também pediu à sobrinha de outro amigo para doar o óvulo, e a uma terceira pessoa que servisse de barriga-de-aluguel. Através dessa improvável interação, os quatro deram à luz filhos que moram com ele e o consideram seu principal genitor.
“Ele é o nosso pai de verdade porque foi ele que teve a ideia”, explicou-me sua filha de dez anos. Mas como eles devem chamar essas outras três pessoas, cada uma envolvida em algum nível na sua concepção?
Quando uma mulher lésbica que conheço pediu que um amigo doasse esperma para ela e sua esposa, ele disse não ter interesse em ser doador, mas adorar a ideia de ser pai. Hoje os três moram juntos, e todos se consideram pais da criança. Até onde sei, isso gerou muita confusão nas escolinhas, e um deles ainda não tem plenos direitos legais em relação à criança.
O que sugiro não é tanto redefinir os papeis de um pai e uma mãe (embora essa redefinição ocorra constantemente, conforme as mudanças no contexto histórico), mas antes abandonar as restrições binárias impostas por esses papeis. Cuidar das crianças sempre foi uma atividade coletiva. E as relações de parentesco estão se tornando cada vez mais complicadas e diversificadas.
Todo o sistema mudou de forma imensurável desde que o movimento feminista ampliou o direito ao divórcio e, assim, abriu caminho para padrastos e madrastas e permitiu que crianças integrassem mais de um lar ao mesmo tempo (fenômeno distinto dos padrastos e madrastas históricos, provenientes de novos casamentos de viúvos e viúvas). Da mesma forma, o feminismo luta para que as obrigações do pai sejam mais próximas às de uma mãe, mas isso não erradica o estigma que os pais enfrentam quando são os principais responsáveis pelos cuidados, nem o estigma ainda maior que suas esposas enfrentam ao não desempenharem esse mesmo papel.
Existe o risco de que distribuir melhor as responsabilidades entre figuras parentais biológicas e não biológicas provoque estigmas semelhantes.
Devido ao nosso apego estático à família nuclear, é normal acharmos que uma criança “precisa” ter uma mãe e um pai, e que a “falta” de um desses papéis arquetípicos pode ser muito problemática “faltando”, como também seria problemático ter um núcleo de apoio e orientação composto por mais de duas pessoas.
Também deveríamos questionar a tirania do parentesco biológico. Por que presumir que é melhor para as crianças ficar ao lado de seus pais biológicos ao invés de qualquer outra pessoa? Algumas crianças têm pais biológicos que não as amam, ou que não têm competência para criá-las. Trata-se de um problema antigo. Mas sempre existiram pessoas com laços biológicos e não biológicos profundamente envolvidas na criação de muitas crianças. Portanto, “parente” deveria ser um conceito abrangente, e cada família deveria ter o direito de definir seus laços de maneira compatível com sua própria realidade.
Como alguém pode supor que sou um pai mais “de verdade” que o meu marido? E como alguém pode presumir que ele é mais “pai” da criança para a qual doou seu esperma do que do filho que cresceu em nosso lar, cuidado por ele desde o nascimento? Chegou a hora de promovermos um festival de novas palavras para designar essas novas formas de parentesco e de criarmos uma sociedade capaz de reconhecê-las.
Não há nada de errado com uma família heterossexual composta por um pai e uma mãe de mesma etnia: este é um arranjo muito antigo para a criação de uma criança, que pode funcionar lindamente. Não tenho nenhuma objeção quanto a isso: eu mesmo fui criado em uma família assim. Mas essa não é a única disposição capaz de funcionar lindamente.
Precisamos reconhecer que as famílias existem em diversos formatos e tamanhos, que o amor não é um recurso finito e que a criação de um filho vai muito além de imperativos genéticos.
Andrew Solomon – The Guardian