Um dos mais influentes pensadores da atualidade, Ailton Krenak está confinado em sua aldeia próxima do Rio Doce e anda indignado com o negacionismo, fruto de uma guerra silenciosa que contagia as pessoas e transforma muitos em zumbis.
Nesta pandemia, a Terra teve de parar. Para ele, esta é uma oportunidade para reprogramar o futuro da Humanidade.
No ano passado, a Companhia das Letras publicou Ideias para Adiar o Fim do Mundo e agora lança A Vida Não É Útil, com textos de reflexão de Krenak sobre a pandemia.
O tom pessimista de seu pensamento atual dá-se pela ascensão de governos de extrema-direita e pelo avanço da destruição ambiental.
CartaCapital: Se a pandemia fez o mundo parar, por que não somos capazes de ouvir o comando de parar de predar o planeta?
Ailton Krenak: A resposta é complexa. Ela envolve a atividade econômica, o poder político e as disputas de hegemonias regionais entre Oriente e Ocidente. Não estamos falando de uma questão regional, da América do Sul, mas de uma pandemia do mundo inteiro, desorganizando a vida e nos dando a oportunidade de pensar em que direção a gente vai sair quando abrir o sinal. Estamos todos parados porque o trem vai passar. Então é pare, escute e olhe. Agora precisamos saber para onde vamos, porque podemos entrar exatamente debaixo dos trilhos.
CC: Como vê este momento de parada do mundo?
AK: Parar para reprogramar com inteligência é uma oportunidade rara. Agora, parar e não ter o que programar vai produzir angústia. É por isso que tem muita gente pirando em vários lugares. E tem gente negando a ciência. As instituições de pesquisa, os institutos, a Fiocruz, estão sendo atacadas, até o Instituto Butantan e os cientistas vêm sendo nominalmente achincalhados. Os nossos institutos da Amazônia vêm sendo totalmente detonados. Não tem fogo na Amazônia, ninguém está queimando nada. É o novo testamento da negatividade. Não estamos vivendo uma guerra armada. É uma guerra silenciosa. É uma situação que está afetando mais os sentidos das pessoas, as convicções que as pessoas tinham sobre suas rotinas, suas vidas. Não estamos tendo um bombardeio do ar, em cima de nossas cabeças. Estamos tendo, correspondendo bem à imagem do vírus, um contágio no plano subjetivo, emocional.
CC: Pelas cosmologia indígena somos na Terra memórias de outras vidas. O que teriam sido Trump e Bolsonaro em vidas passadas?
AK: Provavelmente, nada. Porque tem coisas que vêm do nada. Aquele buraco de minhoca é um lugar nenhum. Na década de 70, 80, os cientistas descobriram o black hole, né? Tem gente que veio desse lugar, desse black hole.
CC: Você também cita o conceito de necropolítica para se referir ao presidente e a uma mentalidade doente que domina o mundo. Por que chegamos a esse ponto?
AK: Chegamos por omissão, conveniência e oportunismo. Nós nos tornamos uma comunidade humana estranha a si mesma, indiferente a quantos estão morrendo e vivendo uma fúria consumista, que parece que a nossa barriga é maior que a nossa vontade e garganta. O mundo está chapado de tanto consumo. Chapou. E está todo mundo empapuçado com o que chamei de “doente”. É uma doença que afeta a capacidade interna de cada um de nós de despertar o poder interior. Tem zumbi para todo lado. É daí que se origina a necropolítica. Ela não é uma coisa que só se maneja no campo das gestões da política. É também uma força obscura que as pessoas admitem, cultivam e andam com ela por aí.
CC: É possível deter a sanha destrutiva do bolsonarismo?
AK: Tenho dificuldade de fazer um debate muito personalizado em cima de Trump, de Hitler ou de qualquer outro imbecil. Porque acho que é superestimar a potência negativa dessas coisas ambulantes. Se são metamorfoses ambulantes, vamos esperar que virem gente. Para podermos avaliar comportamentos que são, digamos, humanos ou possíveis de ser humanizados. Agora, debater coisas? É um trampo infeliz, por falar em Trump.
CC: A ideia de “uma nação que fica de pé”, uma remissão dos povos originários às florestas, está em franca ameaça pelo governo Bolsonaro. Por que eles estão conseguindo “passar a boiada”?
AK: Estão conseguindo passar a boiada à luz do dia. Toleramos a destruição da Mata Atlântica até ela ser reduzida a 12% ou 13% da sua cobertura original. Isso dá oportunidade para um ministro imbecil sobrevoar a Amazônia e dizer que 78% da floresta é Mata Atlântica. A frase é esquizofrênica. Mas, se uma pessoa que está ganhando dinheiro público pode falar asneiras e continuar tranquilo no cargo, então a gente chegou no fim do mundo.
CC: Como você tem acompanhado o avanço da Covid-19 sobre as periferias, sobretudo nas terras indígenas?
AK: Quando anunciaram a pandemia e ela começou a comer gente no Sudeste, no fundo pensei: “Ainda bem que o nosso povo está na floresta e aqueles que estão nas regiões mais remotas vão ficar protegidos”. A minha surpresa é admitir que a letalidade, quando chega na floresta, é muito maior do que quando afeta quem vive numa periferia urbana. Quem é que sabe quem está morrendo na periferia ou no centro? Quantos negros? Quantos brancos pobres? Quantos ricos? O IBGE, esses institutos nossos deveriam fazer uma diferenciação para que a gente não fique na mesma lógica do ministro (Ricardo) Salles, de que é para deixar passar a boiada. A boiada é indistinta, não tem personalidade. Nós não somos gado. O Brasil, o Estado brasileiro, as instituições, têm a obrigação de dizer a cor, a origem e o nome de quem está sendo jogado em vala comum e sendo enterrado por retroescavadeiras.
Entrevista CartaCapital