O calamitoso cenário em que vivemos em decorrência da pandemia e da indiferença que presenciamos em nossa sociedade se revela como verdadeiro cenário de guerra. Os sinais de morte aparecem por toda a parte. Não há um único dia em que as redes sociais cumprem o correr das vinte e quatro horas sem mostrar um amigo ou conhecido que foi vitimado pela doença ou que esteja chorando a ausência de alguém que partiu. Além disso, as redes da vida nos ligam a um bom número de conhecidos, amigos ou mesmo familiares que estão sendo destroçados pela pandemia do desemprego, da fome e da miséria. Nesse momento, é desumano resistir ao afeto doloroso do mundo e das vítimas. É desumano não sentir a dor dos outros.
Por isso mesmo, esse tempo em que vivemos é revestido do manto da pascalidade, que nos faz contemplar os acontecimentos e assimilá-los entre o silêncio e o barulho de nossas memórias. É nesse momento de contemplação que nos indagamos por esse movimento pascal que nos coloca cotidianamente diante de profunda tristeza e surpreende alegria. Explico: afetar-se pela dor do mundo e dos que sofrem causa tristeza em quem não se revestiu de indiferença. Por isso mesmo, qualquer que seja a dor de uma pessoa, ela motiva em nós esse sentimento que experimentamos em diferentes contextos de nossas vidas. E a tristeza vem nutrida pela angústia de nos sentirmos incapazes de operar qualquer mudança possível na realidade dos sofredores. Essa impotência sentida na alma pode, inclusive, paralisar qualquer possibilidade de ação, e, de fato, se nos olharmos nesse momento nós nos veremos, provavelmente, paralisados.
Mas o movimento da pascalidade nos desorbita porque em meio à dor e ao pranto pelos que sofrem, somos convidados a uma tímida e vibrante alegria. Essa alegria não tem nada a ver com a euforia em que muitas pessoas se perderam na exterioridade do individualismo egoísta, porque essa euforia é efêmera como a própria vida. Mas a alegria que brota da pascalidade encontra sentido porque, precisamente, há um mistério que a existência oferece e que consiste em nos sabermos humanos, inacabados, transitórios e recebedores de uma vida, insistente vida. A cada despertar, o coração pulsa a oportunidade do hoje, irrepetível, único, eterno na temporalidade. E o sentimento que brota dessa sensação desobedece ao mal-estar repulsivo provocado pelo mar de lama movediça no qual navegamos à deriva, sem horizontes. Precisamente, o sentimento de cada manhã é o de alegria de nos sabermos sobreviventes da catástrofe que atravessou a vida do mundo.
Mas esse sentimento, antes de tudo, precisa ser lapidado para ser percebido em nós, dentro de nós, tal como um coração a arder durante a longa caminhada em que a palavra de vida incendeia, fervilha a desesperança, o cansaço e a tristeza. É mais fácil ceder à dor e não à cura. Por isso, o poeta escreveu: “tristeza não tem fim, felicidade sim”. E é por essa razão que mesmo em meio à grande lamentação, cujo coro endossamos ao lado dos que perderam vidas, empregos, escola, direito à alimentação – no desejo de uma mobilização popular das forças efetivas para reverter a calamidade instalada –, que somos convocados a experimentar também a tímida alegria da vida que se inaugura e se recria no cotidiano dado. Que aprendamos da vida o que ela ensina: a vida é hoje, somente hoje. Nisto consiste a alegria: não desistir de viver, ainda que flechados por um vírus letal e pela maldade humana que parecem nos conduzir pela via dolorosa da existência, à revelia da pascalidade na qual se origina toda nova vida.
Tânia da Silva Mayer – Dom Total