A igreja católica vive um momento importante de retomada das grandes inspirações do Concílio Vaticano II. O novo bispo de Roma, Francisco, inaugura com alegria um momento novo para a comunidade católica mundial, anunciando a vitalidade de uma “igreja da ternura”, atenta à criação, ao mundo do outro e a todo o ambiente. De uma igreja que busca resgatar o sonho ilustrado por Giotto: “Francisco, restaura a minha casa”. Nessa tremenda e difícil tarefa de fazer renascer a igreja a partir de suas bases evangélicas, Francisco insere também o precioso trabalho de abertura às diversas tradições religiosas.
A abertura ecumênica e o diálogo interreligioso constituem dois fundamentais legados do Concílio Vaticano II. Vale aqui lembrar o mote apontado na declaração conciliar sobre as relações da igreja com outras religiões: de que todos os povos “constituem uma só comunidade” e bebem na mesma matriz de um Mistério sempre maior. A mesma declaração sinaliza que não se pode invocar a Deus como pai de todos a não ser numa perspectiva de “tratamento fraterno” aos diversos caminhos de busca do sagrado. E esses caminhos devem ser acolhidos com alegria e com respeito, pois são frutos do livre exercício da consciência em sua busca da verdade. Cresce a cada dia a consciência da “dignidade da diferença”, da acolhida positiva do pluralismo e do imperativo dialogal. O Vaticano II abriu novas veredas nesse campo dialogal.
No âmbito do magistério eclesial cabe registrar a importância de dois documentos inaugurais: A igreja e as outras religiões – Diálogo e Missão (1984 – Secretariado para os não-cristãos) e Diálogo e Anúncio (1991 – Pontifícia Comissão para o Diálogo Interreligioso). Há que sublinhar a presença e o influxo de um importante teólogo nesse clima de abertura: Pietro Rossano. Foi professor de teologia das religiões na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, bem como nas universidades Urbaniana e Lateranense. Teve também singular atuação no Secretariado para os Não-Cristãos, a partir de 1973, quando foi designado como secretário desse dicastério romano. Foi talvez um dos nomes marcantes na defesa de um novo “estilo dialogal” para a igreja católica, pontuado pela abertura fraterna, de respeito e atenção cuidadosa ao outro, sobretudo aos caminhos inusitados do Espírito.
O documento Diálogo e Missão (1984) sinaliza esse caminho de abertura, tendo continuidade em outra instrução, Diálogo e Anúncio (1991). Na redação desse último documento teve Pietro Rossano um decisivo papel, com a colaboração preciosa do teólogo jesuíta belga, Jacques Dupuis. Mas as resistências contra uma linha de abertura já se faziam sentir na ocasião. Esse último documento passou por cinco redações, e mudanças substantivas ocorreram no texto por influxo da Congregação para a Evangelização dos Povos (em particular o cardeal Josef Tomko), mais reticente com as aberturas aventadas.
Em semelhante clima dialogal tinha ocorrido o evento mundial de oração em favor da paz, em Assis, no ano de 1986. Pietro Rossano também contribuiu para a realização desse evento, estimulando o então papa Wojtyla a lançar-se com entusiasmo nesse empreendimento do espírito. A jornada interreligiosa de oração teve um impacto mundial, chamando a atenção para uma uma “outra dimensão da paz” tecida pelo caminho de uma oração comum que reconcilia as várias tradições religiosas. Na ocasião, o papa Wojtyla mencionava Francisco como o grande símbolo da paz, da reconciliação e da fraternidade entre os povos. Ocorre que esse evento causou mal estar entre segmentos da cúria romana, inclusive no cardeal Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em linha de sintonia com suas reflexões sobre o tema, Ratzinger via com certa perplexidade o evento em razão de seus possíveis riscos teológicos. Já assinalara em clássico livro de 1985 (Rapporto sulla fede) a tendência teológica pós-conciliar de enfatizar excessivamente as religiões não-cristãs, o que poderia ocasionar, a seu ver, o risco de enfraquecer a “essencialidade do batismo” e o esvaziamento da “tensão missionária”. Ainda com respeito à iniciativa de Assis, via com reservas a experiência, na medida em que ela poderia suscitar uma ruptura definitiva com os lefebvrianos. O papa Wojtyla teve que se explicar junto à cúria romana no final de 1986, mas reforçou a importância do evento. Tratava-se para ele de uma “ilustração visível, uma lição dos fatos, uma catequese inteligível a todos, do que pressupõe e significa o empenho ecumênico em favor do diálogo interreligioso recomendado e promovido pelo Concílio Vaticano II”. Infelizmente, o espírito de Assis veio violentamente refreado pela declaração Dominus Iesus (2000), da Congregação para a Doutrina da Fé, assinada pelo cardeal Ratzinger. Essa declaração deixou um rastro de sombra e desconfiança na trajetória eclesial com respeito ao diálogo. Não só iniciativas de abertura foram coibidas, como também os teólogos que se dedicavam ao tema encontraram vivas reações do magistério, e muitos deles foram punidos ou notificados em razão de suas pesquisas e reflexões sobre o tema: Jacques Dupuis, Roger Haight, Tissa Balasuriya, Anthony de Mello, Elizabeth Johnson, Ivone Gebara e tantos outros.
O novo bispo de Roma, Francisco, anuncia a retomada desse espírito de Assis, para a alegria de todos os que se dedicam com entusiasmo ao projeto ecumênico e interreligioso. Coloca no centro de sua atenção o tema do “cuidado”: do cuidado com toda a criação, do cuidado com os mais excluídos, e do cuidado e atenção aos outros. Para além da cantilena tradicional que apenas reitera a ladainha continuísta do catecismo romano, Francisco resgata os valores essenciais do Vaticano II. Sublinha sua firme vontade de prosseguir o caminho ecumênico e dialogal do último concílio. Enfatiza a irrevogabilidade dessa opção fundamental da igreja, de “promoção da amizade e do respeito entre homens e mulheres das diversas tradições religiosas”. Em sua missa inaugural, já havia enfatizado a importância da acolhida fraterna de toda a humanidade, da abertura pastoral da igreja aos sinais dos tempos. No recente encontro com os representantes das diversas igrejas cristãs e das outras religiões, ocorrido na Sala Clementina (20/03/2013), fala da responsabilidade comum das distintas religiões em favor da salvaguarda da criação e do cuidado e atenção aos mais pobres. São causas muito nobres. Fala também da importância de manter acesa no mundo a “sede do Absoluto”. São desafios essenciais para as religiões. O encontro reúne importantes lideranças religiosas como o patriarca ecumênico de Contantinopla, Bartolomeu I, o metropolita Hilarion do patriarcado de Moscou, o secretário do Conselho Ecumênico das Igrejas, Olav Fykse Tveit, os rabinos Riccardo Di Segni (Roma) e David Rosen (responsável pelas relações entre fés do Comitê Judaico Americano), bem como outras lideranças do islã, do budismo, do sikhismo, jainismo etc. Com o patriarca Bartolomeu I teve antes um encontro reservado. Novidadeira a presença de um patriarca de Constantinopla em Roma, sinalizando a abertura de importantes canais de comunicação com a igreja ortodoxa. Francisco o acolhe com alegria chamando-o de “irmão André”, uma referência ao irmão do apóstolo Pedro. Com os amigos e irmãos judeus presentes, Francisco evoca o grande “vínculo espiritual” que une os dois povos de Deus. Sinaliza a alegria com a presença muçulmana, que também marca uma irmandade singular, daqueles que partilham a crença no Deus vivente e misericordioso. Mas aponta também a proximidade da igreja com todos os outros homens e mulheres de boa vontade: de todos aqueles que “embora não se reconhecendo pertencentes a nenhuma tradição religiosa, todavia se sentem em busca da verdade, da bondade e da beleza”. Eles também, sinaliza Francisco, “são nossos preciosos aliados no compromisso em defesa da dignidade humana, na construção de uma convivência pacífica entre os povos e na guarda cuidadosa da criação”.
Os gestos inaugurais de Francisco em seu novo exercício pastoral são portadores de viva esperança para a comunidade cristã, mas também um alento vital para todas as outras comunidades religiosas e buscadores espirituais. Não há dúvida que estamos diante de uma nova primavera, pontuada por um novo espírito e uma nova energia, depois do longo inverno que marcou as últimas décadas.
Faustino Teixeira
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.