O padre Júlio Lancellotti trabalha corajosamente na cidade de São Paulo com população de rua. Ele relata a situação dramática que encontra:

Na missão pastoral tenho conversado com vários LGBT que estão pelas ruas da cidade, alguns doentes, feridos, abandonados. Muitos relatam histórias de violência, abuso, assédio, torturas e crueldades. Alguns contam como foram expulsos das igrejas e comunidades cristãs, rejeitados pelas famílias em nome da moral. Testemunhei lágrimas, feridas, sangue e fome. Impossível não reconhecer neles a presença do Senhor Crucificado!

Esta sensibilidade espiritual é profundamente cristã, pois o Filho eterno de Deus, ao se tornar humano, é solidário com toda humanidade, especialmente os pobres e os que sofrem. É o próprio Jesus que diz: “tive fome e me deste de comer, tive sede e me deste de beber […] pois todas as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25, 31-46). Ele se identifica com famintos, sedentos, estrangeiros, nus, enfermos e encarcerados. Na sua crucifixão, Jesus se torna solidário com todos os crucificados da história, com todos os que sofrem brutal e injustamente, incluindo os LGBT. Mas a Sua paixão é desqualificada pelos seus adversários que sordidamente dizem: “Salva-te a ti mesmo! Se és o Filho de Deus, desce da cruz!” (Mt 27,40).

A violência contra LGBT tornou-se mais evidente por causa de sua visibilidade no mundo atual. No passado, para se defender da intolerância e da hostilidade, muitos deles viviam no anonimato ou à margem da sociedade. Vários gays e lésbicas se escondiam no casamento tradicional, constituído pela união heterossexual, para não manifestarem sua condição. Travestis e transexuais não tinham acesso aos procedimentos de transexualização hoje disponíveis. Em alguns lugares formavam guetos, que eram espaços de convivência bastante reservados como forma de proteção dos indivíduos. Atualmente, a situação é bem diferente. Muitos deles fazem grandes paradas, estão presentes em filmes, programas de televisão, olimpíadas, empresas, escolas e outras instituições; buscam reconhecimento, exigem ser respeitados e reivindicam os mesmos direitos e deveres dos demais cidadãos. Esta população está em toda parte. Quem não faz parte dela, tem parentes próximos ou distantes que fazem, velada ou manifestamente, bem como vizinhos ou colegas de trabalho.

A aversão aos LGBT produz diversas formas de violência física e verbal. Há pais de família que já disseram: “Prefiro um filho morto a um filho gay!”. Há avós que já disseram: “Prefiro vinte netas putas a uma neta sapatão!”. Não são raros travestis, gays e lésbicas expulsos de casa por seus pais. Entre os palavrões mais ofensivos em português, constam a referência à condição homossexual (veado!) e ao sexo anal, comum no homoerotismo masculino. Ou seja, é xingamento. Muitas vezes, quando se diz: “fulano não é homem”, entende-se que é gay; ou “fulana não é mulher”, que é lésbica. Ou seja, ser homem ou mulher supostamente exclui a pessoa homossexual. Esta aversão se enraíza profundamente na cultura. No Brasil são muito frequentes os homicídios, sobretudo de travestis. Não raramente, estes homicídios são cometidos com requintes de crueldade. Há também suicídios de muitos adolescentes que se descobrem LGBT, e mesmo de adultos. Eles chegam a esta atitude extrema por sentirem a hostilidade da própria família, da escola e da sociedade. Calcula-se que o índice de suicídio nesta população é cinco vezes maior que no restante. Toda esta hostilidade com inúmeras formas de discriminação, mesmo quando não leva à morte, traz frequentemente tristeza profunda ou depressão.

Curiosamente, esta realidade está ausente em muitos documentos da Igreja Católica. Ao se falar de pobres, excluídos e pessoas que sofrem, menciona-se frequentemente: migrantes, vítimas da violência, refugiados, vítimas de sequestro e tráfico de pessoas, desaparecidos, portadores de HIV, vítimas de enfermidades endêmicas, tóxico-dependentes, idosos, meninos e meninas vítimas da prostituição, pornografia, violência ou trabalho infantil; mulheres maltratadas, vítimas de exclusão e exploração sexual, pessoas com deficiência, grandes grupos de desempregados, excluídos pelo analfabetismo tecnológico, moradores de rua em grandes cidades, indígenas, afro-americanos, agricultores sem-terra e mineiros. Infelizmente, falar de LGBT ainda é incômodo em muitos ambientes. Não raramente, o sofrimento desta população é ignorado ou silenciado.

Para representar a violência sofrida por eles e elas, a travesti e atriz Viviany Beleboni encenou uma crucifixão em uma parada em São Paulo. Depois disto, ela mesma foi agredida violentamente duas vezes como forma de retaliação. Levou chutes, sofreu cortes no corpo, teve hematomas e dentes quebrados. Sobre a segunda agressão, feita por cinco homens, ela relata algo revelador sobre a motivação dos agressores:

A todo momento falavam que eu era um demônio, que essa raça tinha que morrer. Recitavam passagens da Bíblia ou que diziam alguma coisa relacionada à Bíblia. Falavam em Romanos e coisas como “não te deitarás com um homem, como se fosse mulher” e muitas palavras que não entendia, como se fosse em outro idioma. Eles diziam também “traveco vira homem”, “praga da humanidade”. Ofensas e Chutes. Quero esquecer.

Lamentavelmente, estes agressores fanáticos utilizam a Palavra de Deus, tirando-a do contexto em que foi escrita, para justificar a demonização do outro e a agressão brutal. Tornam-na uma palavra de morte, um instrumento diabólico. Dela extraem “balas bíblicas” disparadas impiedosamente contra homossexuais e transgêneros.

A hostilidade a LGBT não é gratuita. Há importantes indicações de que o preconceito contra esta população seja um temor inconsciente do coração humano que se recusa a reconciliar-se com a própria verdade. O medo do perigo de contágio, fanatismos, rigorismos e repugnâncias em relação eles e elas revelam uma necessidade de ocultar a verdade sobre a própria existência, ou sobre impulsos interiores. Na base dos preconceitos, há frequentemente o medo de perder a própria segurança diante do que é diferente, estranho e desconhecido, catalogando-o por isso mesmo como perigoso e inferior. Quanto maiores o fanatismo e a repugnância, provavelmente existe também uma maior necessidade de ocultar a própria existência, ou uma plena recusa a reconciliar-se com a própria verdade.

Júlio Lancellotti reconheceu a paixão de Cristo na população de rua LGBT. Viviany Beleboni a representou e a sofreu. Recentemente, Marielle Franco foi assassinada. Ela era bissexual e defendia os direitos humanos de diversas populações. A paixão de Cristo, consequência de Sua vida e luta em favor do anúncio do Reino de Deus, não deve ser jamais desqualificada. O Seu corpo é dado e o Seu sangue é derramado pela salvação da humanidade. Não nos esqueçamos dos crucificados da história com os quais o Cristo é solidário, nem deixemos que os desqualifiquem e esqueçam. Cultivar a memória deles e delas é trilhar o caminho que conduz à ressurreição.

 

Luís Corrêa Lima – Padre jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio