Na companhia de Pantagruel, famoso personagem de François Rabelais, navego entre as ilhas imaginárias que há séculos deliciam gerações. Abordo primeiro a Ilha dos Ventos, depois a Ilha da Procuração e em seguida a dos Macróbios ou Longevos. E, no entanto, como leitor rebelde, sigo pouco mais ao sul, em busca de novos arquipélagos, não mencionados por Rabelais, mas que poderiam muito bem existir. Penso na Ilha da Mesóclise, regida por Judas II, príncipe do Larapistão. Penso na Ilha dos Escravos, cuja população decidiu abolir a tirania das leis trabalhistas que impedem o crescimento econômico.

Adentremos o arquipélago das Ilhas Judiciárias, assim denominadas pela quase supressão dos demais Poderes. Os membros do Áureo Colégio, a que corresponderia modestamente nosso STF, vestem-se de modo sublime, sumos sacerdotes, brâmanes do Oráculo-Mor, dotados de salários astronômicos, em virtude do alto desempenho de suas funções litúrgicas. Ignoram conflito de interesse, legítima suspeição, nem mesmo se declaram auto-impedidos. Talvez o leitor não acredite, mas o magistrado pode absolver o crime de um velho amigo e condenar sem provas um notório desafeto. Nisso reside a segurança jurídica: o réu escolhe o juiz propício, tornando a sentença previamente conhecida.

É oportuno assistir às sessões públicas do Áureo Colégio. Todos poliglotas, praticam um latim macarrônico e decadente, como se fossem patrícios iluminados. Fazem uso de um alemão claudicante e de um italiano inaceitável, órfão de vogais. Lembram sacerdotes egípcios que operam mediante fórmulas mágicas, como é o caso de Sensaborão I, que deliberou a supressão da segunda instância, excetuados amigos e parentes para os quais pode haver três recursos. A vantagem, segundo Sensaborão, implica a redução de custos e inúteis chicanas processuais. Há quem defenda uma segunda instância, como insiste Gastão II, composta por uma Câmara Sofista de Revisão.

Volto ao oceano de Rabelais, mais livre e divertido, ausente nas Ilhas Judiciárias. E poderia citar outras e mais belas, como Medamothi, onde se vendem a baixo custo as Ideias de Platão ou a Ilha da Divina Garrafa, onde é celebrado o deus Baco.

Mais urgente que a descrição das ilhas, pairam em Gargantua e em Pantagruel, as contradições do século XVI, enfrentadas com a ironia de uma ácida gargalhada.

Aborrecido com a nossa Ilha, para não dizer nauseado com essa crise sem precedentes, que flagela nosso país. devoro as páginas de Lima Barreto e Manoel Bomfim, para que a indignação não erre o alvo e nem tampouco o endereço. Volto a Os bruzundangas e ao América Latina: males de origem, onde Bomfim ensina: “utopia, sim, sejamos utopistas, bem utopistas, contanto que não esterelizemos nosso ideal, contanto que trabalhemos”.

Que não nos falte discernimento e ousadia para enfrentar as ameaças que se abatem do que ainda resta de nosso patrimônio democrático.

 

Marco Lucchesi
Premiado poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor, sétimo ocupante da cadeira nº15 da Academia Brasileira de Letras.