Numa de suas obras mais importantes, Bendowa (O caminho religioso), Mestre Dogen enfatiza a importância do Zazen, visto por ele como um “ponto central e irrenunciável” do ensinamento de Sakyamuni (Buda). A tarefa primordial dos Patriarcas Zen foi a de buscar transmitir corretamente, de mestre para discípulo, a prática do Zazen, mantendo vivo o seu ensinamento.

Há que buscar refletir hoje sobre o significado da meditação Zen Budista, com o recurso de textos de Dogen, mas também da límpida e didática reflexão sobre o tema tecida por José Carlos Michelazzo, que a meu ver é um dos mais competentes e generosos autores nacionais que tratam desse tema.

O texto em questão é: “Desapego e entrega: atitudes centrais da meditação Zen Budista e suas ressonâncias nos pensamentos de Eckhart e de Heidegger”. Esse texto foi apresentado no V Colóquio sobre o Pensamento Japonês (São Paulo, novembro de 2010 – e publicado na Revista REVER da PUC-SP, Ano 11, n. 2, jul/dez 2011). Não quero abordar todo o texto, mas um aspecto que considero fundamental apresentado ali.

Michelazzo, de forma divertida, começa sua introdução comentando algumas falas corriqueiras sobre a meditação Zen apresentadas na internet. Numa delas alguém fala da importância da meditação no tempo atual: “Para quem anda atribulado e assoberbado, a meditação pode ser aquela pausa vinda para ´zerar` o cérebro e conseguir, ainda que por instantes, suprimir os pensamentos angustiantes”. Michelazzo se pergunta o que um mestre Zen diria de opiniões como estas. E para nossa surpresa e “desapontamento”, ele provavelmente diria: “Mas isso é verdade!”.

De fato, a meditação provoca tudo isso. Não são observações falsas, diria o mestre, mas “secundárias” diante do que a meditação traz como essencial. Na prática Zen Budista o que a meditação envolve é algo de muita profundidade, que supera a visão da “dualidade ilusória” e aponta para a “não dualidade salvífica”, que é libertadora.

Mas para entender isso é necessário recuperar um dos mais importantes pressupostos do budismo, que está expresso no Sermão das Quatro Verdades, ou seja, a “originação dependente” (pratityasamutpada) ou “originação reciprocamente condicionada”. Esse pressuposto é ESSENCIAL e indica algo que é singular: todos nós estamos envolvidos numa “teia de interdependência” da qual ninguém pode escapar. O que ocorre, infelizmente, é que nos esquecemos disso.

O Zen Budismo propõe ousadamente a busca de recuperação desta perspectiva, num empenho decidido em favor da ultrapassagem desse modo secundário ou ilusório de compreender o real na linha de um modo mais ORIGINÁRIO.

O pensamento ocidental, mesmo aquele mais arrojado de um Martin Heidegger, não conseguiu superar resquícios de antropocentrismo que não dão conta de captar essa não-dualidade. Talvez tenha sido o cerne da crítica feita a Heidegger por alguns pensadores da Escola de Kioto. Entender a “originação dependente” no âmbito do Zen Budismo é buscar captar o significado mais profundo daquilo que Dogen chamou de “prática contínua”.

Numa de suas obras, Gyoji (do Shobogenzo), Dogen sinaliza que “a partir da perspectiva da ´originação dependente` (pratityasamutpada), há simplesmente prática contínua”. O que isso significa? Para que haja prática contínua é necessário quebrar o lastro antropocêntrico que mantém aceso o resquício de dualidade e de auto-centralidade.

Quando se supera isso, segundo Dogen, abre-se um novo campo de percepção e penetração do real: abre-se a possibilidade “de experienciar as polaridades do real em sua completa interpenetração”. Gyogi significa exatamente isso: fazer a prática e se manter nela. E isso não é só possibilidade para humanos, mas para todos os seres, daí talvez a dificuldade antropocêntrica de Heidegger. Para Dogen, diferentemente, “a prática contínua pertence a todos os seres do universo”.

Diz Dogen: “Devido à prática contínua há o sol, a lua, as estrelas, a grande terra e a vastidão do espaço (…). Ver uma flor se abrindo ou uma folha caindo no presente momento é ver plenamente o que a prática contínua é. Não há nenhum polimento de espelho ou quebra de espelho que não seja prática contínua”. É uma prática que traduz essa “teia de interdependência que faz com que todas as existências de todos os seres sejam regidas por uma trama global, total, cósmica”.

Tudo o que está aí, tudo o que é, diz Dogen, está regido por esse exercício contínuo da teia cósmica. Tudo está ligada a uma “prática da coexistência”. Isso é de uma riqueza única… Para ilustrar essa trama, Michelazzo recorre ao exemplo do peixe dado por Dogen: “O peixe nada na água; a água para o peixe é vida (… por isso) se um peixe deixa a água ele, imediatamente, perece” (Dogen).

O que confere significado pleno à vida do peixe é essa“completa interpenetração com a água. Não há caminhos objetivamente pré-estabelecidos na água para o peixe nadar porque ele não os estuda antecipadamente. Os caminhos surgem para o peixe ao praticar o nado; peixe e água formam uma unidade não-dualística que é costurada pela prática da natação. E quando essa unidade é quebrada, a essência do peixe, sua piscidade, desaparece” (Michelazzo).

Isso é fantástico, e nos ajuda a entender, e como, tudo o que Viveiros de Castro busca traçar sobre o perspectivismo. Mas voltemos ao Zen. Michelazzo assinala que nós, humanos não damos conta de entender “como o peixe se exercita nessa teia cósmica”, e talvez nunca conseguiremos saber: qual “a postura correta adotada pelo peixe para a sua prática contínua”. E aqui Michelazzo encontra uma chave preciosa para entender a situação de nós, modernos, enredados num antropocentrismo desatento. Ele diz:

“Há nessa constatação paradoxal um aceno da condição humana que pode ser aprendida, talvez, pelas seguintes questões: será que a exclusividade do homem não estaria, então, relacionada ao exercício de uma prática especificamente humana, pelo fato dele ser, dentre todos os seres, o ÚNICO QUE SE ESQUECEU DA TEIA CÓSMICA, que perdeu a memória de sua originação dependente, de sua não dualidade? E por esse esquecimento e perda lhe é exigido um ESFORÇO DIFÍCIL E CONTÍNUO para se entregar ao que originariamente ele é, e, assim, fazer o caminho de volta à sua própria casa?” (Michelazzo).

A meditação Zen é, portanto, esse esforço para voltar à casa, exigindo duas atitudes essenciais: desapego e entrega. E o estado meditativo, diferentemente do estado de vigília ou daquele estado de “final de expediente”, fadado ao sono, é marcado por um ritmo distinto: de imobilidade e relaxamento, mas de atenção desperta. Trata-se de um estado de concentração singular, que os budistas nomeiam como samadhi, em que a mente vem mantida “com foco sem foco”, sem apegos a pensamentos.

Não há mais objeto ou coisa sobre a qual a atenção se debruça, a atenção é agora distinta, plena, e seu ritmo é aquecido pelo vazio, pelo “sem porque”. E nessa sensação de calma e tranquilidade o ser humano tem melhores condições de perceber sua dimensão absolutamente contingente e também a contingência dos fenômenos; e também da insubstancialidade de todas as coisas.

 

Faustino Teixeira
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.