“Krisis é originalmente um conceito médico, que designava no corpus hipocrático o momento em que o médico decidia se o paciente sobreviveria à doença. Os teólogos adotaram o termo para indicar o julgamento final que ocorre no último dia. Se se observa o estado de exceção em que estamos vivendo, dir-se-ia que a religião médica conjuga a crise perpétua do capitalismo com a ideia cristã de um tempo final, de um eschaton em que a decisão extrema está sempre em curso e chega ao mesmo tempo precipitada e atrasada, numa tentativa incessante de poder governá-la, sem contudo resolvê-la de uma vez por todas”, escreve Giorgio Agamben, filósofo italiano, em artigo publicado por Quodlibet, 02-05-2020. A tradução é de Davi De Conti.
Segundo o filósofo italiano, “é possível que a epidemia que estamos enfrentando seja a realização da guerra civil mundial que, de acordo com os cientistas políticos mais atentos, tomou o lugar das guerras mundiais tradicionais. Todas as nações e povos estão agora em guerra duradoura consigo mesmos, porque o inimigo invisível e elusivo com o qual estão lutando está dentro de nós”.
Eis o artigo.
Que a ciência tenha se tornado a religião de nosso tempo, aquilo em que os homens acreditam crer, é há muito tempo evidente. No Ocidente moderno conviveram e em certa medida ainda convivem três grandes sistemas de crença: o cristianismo, o capitalismo e a ciência. Na história da modernidade, essas três “religiões” se cruzaram necessariamente em diversas ocasiões, entrando por vezes em conflito e em seguida se reconciliando de diversos modos, até alcançarem progressivamente uma espécie de pacífica, articulada convivência, quando não uma verdadeira e peculiar colaboração em nome do interesse comum.
O fato novo é que entre a ciência e as outras duas religiões se reacendeu, sem que o notássemos, um conflito subterrâneo e implacável, cujos resultados vitoriosos para a ciência estão hoje diante de nossos olhos e determinam de maneira inaudita todos os aspectos de nossa existência. Esse conflito não diz respeito, como no passado, à teoria e aos princípios gerais, mas, por assim dizer, à práxis cultual. Também a ciência, de fato, como qualquer religião, conhece formas e níveis diversos por meio dos quais organiza e ordena a própria estrutura: à elaboração de uma dogmática sutil e rigorosa corresponde na prática uma esfera cultual extremamente ampla e capilar que coincide com o que chamamos tecnologia.
Não surpreende que o protagonista dessa nova guerra de religião seja aquela parte da ciência em que a dogmática é menos rigorosa e mais forte o aspecto prático: a medicina, cujo objeto imediato é o corpo vivente dos seres humanos. Tentemos estabelecer os traços essenciais dessa fé vitoriosa com a qual cada vez mais teremos de acertar as contas.
1) O primeiro atributo é que a medicina, como o capitalismo, não necessita de uma dogmática especial, mas se limita a tomar emprestado da biologia os seus conceitos fundamentais. Diferentemente da biologia, contudo, articula esses conceitos em um sentido gnóstico-maniqueísta, quer dizer, conforme uma exasperada oposição dualista. Existe um deus ou um princípio maligno, a doença, sem dúvida, cujos agentes específicos são as bactérias e os vírus, e um deus ou um princípio benéfico, que não é a saúde, mas a cura, cujos agentes cultuais são os médicos e a terapia. Como em toda fé gnóstica, os dois princípios são claramente separados, mas na prática podem contaminar-se, e o princípio benéfico e o médico que o representa podem enganar-se e sem se dar conta colaborar com o inimigo, sem que isso invalide de algum modo a realidade do dualismo e a necessidade do culto por meio do qual o princípio benéfico combate a sua batalha. E é significativo que os teólogos que devem estabelecer a estratégia sejam os representantes de uma ciência, a virologia, que não possui um lugar próprio, mas se situa na fronteira entre a biologia e a medicina.
2) Se essa prática cultual foi até agora, como qualquer liturgia, episódica e limitada no tempo, o fenômeno inesperado a que estamos testemunhando é que ela se tornou permanente e onipresente. Não se trata mais de tomar remédios ou de se submeter quando necessário a uma consulta médica ou a uma intervenção cirúrgica: toda a vida do ser humano deve tornar-se a todo instante o lugar de uma ininterrupta celebração cultual. O inimigo, o vírus, está sempre presente e deve ser combatido incessantemente e sem trégua. Também a religião cristã conhecia tendências totalitárias similares, mas elas diziam respeito apenas a alguns indivíduos – em particular os monges – que escolheram colocar sua inteira existência sob a bandeira “orai incessantemente”. A medicina como religião acolhe esse preceito paulino e ao mesmo tempo o subverte: onde os monges se reuniam no convento para orarem juntos, a adoração deveria agora ser praticada com a mesma assiduidade, mas mantendo-se separados e a distância.
3) A prática cultual não é mais livre e voluntária, exposta apenas a sanções de ordem espiritual, mas deve tornar-se normativamente obrigatória. O conluio entre religião e poder profano certamente não é um fato novo; totalmente novo é, porém, que não mais se refira, como era o caso para as heresias, à profissão de dogmas, mas exclusivamente à celebração do culto. O poder profano deve estar atento para que a liturgia da religião médica, que coincide agora com toda a vida, seja pontualmente observada nos fatos. Que se trate aqui de uma prática cultual e não de uma exigência científica racional é imediatamente evidente. As doenças cardiovasculares são de longe a causa mais frequente de mortalidade em nosso país e se sabe que elas podem diminuir se um estilo de vida mais saudável for adotado e se uma dieta específica for seguida. Mas nenhum médico jamais pensou que essa forma de vida e nutrição, que eles aconselhavam aos pacientes, passaria a ser objeto de uma normativa jurídica, que decretaria ex lege o que se deve comer e como se deve viver, transformando toda a existência em uma obrigação sanitária. Exatamente isso foi feito e, ao menos por ora, as pessoas, como se fosse óbvio, aceitaram renunciar à própria liberdade de movimento, ao trabalho, às amizades, aos amores, às relações sociais, às próprias convicções religiosas e políticas.
Avalia-se aqui como as duas outras religiões do Ocidente, a religião de Cristo e a religião do dinheiro, cederam o primado, aparentemente sem combaterem, à medicina e à ciência. A Igreja renegou seus princípios pura e simplesmente, esquecendo que o santo cujo nome o atual pontífice adotou abraçava os leprosos, que uma das obras de misericórdia era visitar os enfermos, que o sacramento só se pode administrar presencialmente. O capitalismo por sua vez, embora com alguns protestos, aceitou uma perda de produtividade que nunca ousara considerar, esperando provavelmente alcançar mais tarde um acordo com a nova religião, que neste ponto parece disposta a transigir.
4) A religião médica tomou sem reservas do cristianismo a instância escatológica que este deixara cair. Já o capitalismo, secularizando o paradigma teológico da salvação, havia eliminado a ideia de um fim dos tempos, substituindo-a por um estado de crise permanente, sem redenção ou fim. Krisis é originalmente um conceito médico, que designava no corpus hipocrático o momento em que o médico decidia se o paciente sobreviveria à doença. Os teólogos adotaram o termo para indicar o julgamento final que ocorre no último dia. Se se observa o estado de exceção em que estamos vivendo, dir-se-ia que a religião médica conjuga a crise perpétua do capitalismo com a ideia cristã de um tempo final, de um eschaton em que a decisão extrema está sempre em curso e chega ao mesmo tempo precipitada e atrasada, numa tentativa incessante de poder governá-la, sem contudo resolvê-la de uma vez por todas. É a religião de um mundo que se sente derradeiro e ainda não é capaz, como o médico hipocrático, de decidir se sobreviverá ou morrerá.
5) Como o capitalismo e diferentemente do cristianismo a religião médica não oferece perspectivas de salvação e redenção. Pelo contrário, a cura que busca só pode ser temporária, uma vez que o Deus maligno, o vírus, não pode ser eliminado de uma vez por todas, em verdade muda constantemente e assume sempre novas formas, presumivelmente mais perigosas. A epidemia, como sugere a etimologia do termo (demos é em grego o povo como corpo político e polemos epidemios é em Homero o nome da guerra civil) é acima de tudo um conceito político, que se prepara para tornar-se o novo terreno da política – ou da não política – mundial. É mesmo possível que a epidemia que estamos enfrentando seja a realização da guerra civil mundial que, de acordo com os cientistas políticos mais atentos, tomou o lugar das guerras mundiais tradicionais. Todas as nações e povos estão agora em guerra duradoura consigo mesmos, porque o inimigo invisível e elusivo com o qual estão lutando está dentro de nós.
Giorgio Agamben, Quodlibet – IHU