Muitos já ouviram falar no martelo de Nietzsche. Trata-se do penúltimo livro do famoso filósofo alemão, escrito pouco antes do perder a razão. O título remete a uma ópera de Wagner, “Crepúsculo dos ídolos”, que tem como subtítulo “Como filosofar com o martelo”.
A obra consiste em uma síntese de toda a obra do filósofo, que tem ao fundo uma declaração de guerra contra os ídolos antigos e novos do Ocidente, que obscurecem a mente humana com ilusões, tais como equívocos e tendências várias do pensar moderno e seus representantes. O martelo ou marreta nietzschiano pretende destroçar esses ídolos diversos, assim como, tocando-os e destrinchando-os com sua acurada crítica, comprovar que são ocos e vazios, carentes de consistência.
Aqui e agora, não é do martelo de Nietzsche que pretendo falar, embora a metáfora possa aplicar-se ao caso. O tema desta crônica é uma marreta empunhada não por um filósofo, mas por um sacerdote católico: o Pe. Júlio Lancelotti, coordenador da pastoral do povo da rua da diocese de São Paulo. Figura presente e incansável no atendimento aos moradores de rua, por ele chamados de irmãos, o padre aparece todos os dias nas redes sociais servindo misericordiosamente os pobres e ao mesmo tempo denunciando toda e qualquer instância que ameace prejudicá-los e aumentar ainda mais seu sofrimento.
Foram já inumeráveis as vezes em que o Pe. Lancelotti postou fotos dos irmãos de rua, no rigor do inverno paulistano, sendo atacados com jatos de água fria, a fim de desocuparem espaços públicos; ou do rapa passando e confiscando todos os pertences com que os moradores da rua armavam sua precária habitação para passar a noite. Desta vez, a denúncia teve como personagens uma série de pedras pontiagudas que foram postas sob um viaduto situado no bairro do Tatuapé, na zona leste da cidade, e que pretendia evitar que moradores de rua colocassem colchões no local.
Pe. Júlio primeiramente exibiu fotos das pedras que encheram as redes sociais deixando perplexos os internautas. Com palavras indignadas, denunciava o gesto cruel que retirava dos sem teto o único lugar onde poderiam descansar seus corpos mal alimentados e maltratados: o chão debaixo do viaduto, ao abrigo dos carros que transitam na via pública.
Em seguida, porém, resolveu fazer algo mais concreto: com uma marreta na mão passou a destruir e arrancar as pedras ali colocadas. E explicava seu gesto como pretendendo destruir as “pedras da injustiça”. Sua atitude profética e indignada inspirou fotógrafos e cartunistas vários. Os desenhos do padre com a marreta na mão derrubando as pedras encheram as redes e testemunharam como este gesto traduzia os sentimentos de muitos. O corajoso gesto do sacerdote era portador da indignação em que hoje vivemos neste país, que nos faz todos os dias acordar com vontade de empunhar uma marreta e destruir as pedras da opressão que se interpõem entre os cidadãos brasileiros, sobretudo os mais pobres, e seu direito à vida digna e plena.
O gesto e o comportamento de Jú lio Lancelotti certamente não se coadunam muito com o estereótipo que se tem de um padre. Espera-se que o mesmo se atenha ao interior da igreja ou da paróquia, não se imiscuindo nos assuntos seculares ou materiais, cuidando apenas das almas dos fiéis.
Sucede que a tradição judaico-cristã, da qual o padre Lancelotti é digno representante, sempre teve entre seus quadros profetas que denunciaram em alto e bom som os dois grandes males que impediam o povo de viver plenamente a aliança com seu Deus: a injustiça e a idolatria. E inúmeras vezes aparecem na Bíblia hebraica as chamadas de atenção que esses mesmos profetas faziam contra os ídolos que tinham pés de barro e eram ocos como os que Nietzsche queria destruir com seu martelo. Na Bíblia Cristã, Jesus de Nazaré, que com tanto carinho tratava publicanos e pecadores, aparece no Templo de Jerusalém usando o chicote para repudiar o uso que fazem da casa de oração para comércio e lucro indevido.
A marreta de Júlio Lancelotti encontra-se, portanto, afinada com o melhor da tradição à qual pertence. Golpeando as pedras, chamou a atenção da opinião pública e a própria prefeitura tomou providências para retirá-las, concordando que o fato de as colocar havia sido equivocado. O espaço público voltou a abrir-se para os pobres. Se é escandaloso que não tenham lugar para viver e devam recorrer à rua para isso, que pelo menos possam ali colocar seus colchões e descansar seus corpos.
Ao Pe. Júlio vai nosso agradecimento por nos recordar constantemente que o Evangelho é um fogo que arde e queima, e não um analgésico que disfarça as dores e acalma falsamente as consciências.
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.