Considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos, Machado de Assis inspirou recentes polêmicas na mídia e nas redes sociais. Pena que isso tenha ocorrido não necessariamente pela grandeza de sua obra. Até porque muitos daqueles que o citam provavelmente nunca leram ou compreenderam de fato os seus livros.
Em 2019, a Faculdade Zumbi dos Palmares, sediada em São Paulo, declarou que as fotos do autor de Dom Casmurro foram branqueadas ao longo da História. A entidade divulgou uma imagem colorizada, que seria mais próxima da realidade. Já o youtuber Felipe Neto causou celeuma em janeiro deste ano, ao afirmar que romancistas como Machado e Álvares de Azevedo não são para adolescentes.
Ressaltar a condição social de Machado de Assis não altera em nada a importância de sua obra. Afinal, boa parte dos leitores sempre soube que ele era filho de um pintor negro e uma lavadeira portuguesa. No entanto, reafirmar a negritude de Machado é relevante do ponto de vista político. Trajetórias como a dele podem servir de exemplo para milhões de jovens de origem humilde. Mas, para isso, é preciso que o leiam.
Felipe Neto não deixa de ter razão ao dizer o óbvio. A maneira como alguns professores impõem determinados livros aos alunos muitas vezes surtem efeito contrário. Para ler e entender certos escritores é preciso um mínimo de maturidade. Contudo, se crianças e adolescentes não gostassem de ler, como muitos afirmam, como explicar, por exemplo, o fenômeno Harry Porter? Gostar de ler é uma coisa. Ser obrigado, é outra.
Um leitor voraz
Preto, pobre, gago e epilético, Machado traçou um objetivo na vida e trabalhou duro para alcançá-lo, com disciplina e muito esforço. Essa é uma das lições que o autor nos ensina. Sua família era agregada numa chácara no Morro do Livramento pertencente à sua madrinha de batismo, uma das mulheres mais ricas do Rio de Janeiro. O nome Joaquim Maria é uma homenagem a ela e ao padrinho, igualmente abastado.
O garoto se tornou desde cedo um leitor voraz. Aprendeu francês, provavelmente com a madrasta e também com a esposa de um certo padeiro. Também sabia latim, inglês e italiano. Não chegou a fazer faculdade, mas adquiriu um grau de erudição superior ao de muitos diplomados do seu tempo. Basta conferir a quantidade de citações em seus livros.
Capital do Império, o Rio de Janeiro onde Machado nasceu, em 1839, tinha cerca de 200 mil habitantes, sendo a maioria analfabeta. Metade da população era de escravos. As condições sanitárias eram péssimas e a média de vida na corte não chegava a 35 anos.
O futuro Bruxo do Cosme Velho começou a trabalhar ainda na infância e mudou de emprego diversas vezes, até ser admitido numa tipografia. Ao notar o seu talento para a letras, o patrão, Paula Brito, tornou-se seu primeiro mentor. Depois vieram outros não menos importantes, como Manuel Antônio de Almeida, autor de Memórias de um sargento de milícias.
Poemas e crônicas
Ao contrário do que muitos pensam, Machado não era exatamente um gênio. Sua obra não nasceu pronta, mas resultou de muita lapidação. Publicou os primeiros poemas em jornais do Rio e acabou se tornando jornalista. Começou na redação como cronista e crítico de teatro, o que lhe garantia acesso gratuito a muitos espetáculos. Daí sua devoção à obra de Shakespeare.
Interessante lembrar que autores ditos engajados nunca o perdoaram por supostamente não ter abraçado as grandes causas do seu tempo, como a abolição e a proclamação da República. Os modernistas cobraram-lhe postumamente uma atitude nacionalista. No entanto, ele não estava interessado nas coisas transitórias. Dividida em duas fases e em vários gêneros literários, sua obra revela um autor niilista e, acima de tudo, cético.
Reservado, discreto, irônico e profundo observador do gênero humano, Joaquim Maria Machado de Assis falava menos que escrevia e chegava aos leitores pelos jornais, como poeta, cronista, contista e autor de romances em forma de folhetim. Os livros propriamente ditos eram para uma elite. Basta dizer que a primeira edição de Memórias póstumas de Brás Cubas foi de apenas 400 exemplares.
Outra coisa a ressaltar é que o escritor seguiu a própria receita do “medalhão”, detalhada em um dos seus contos. Soube estabelecer boas relações, inclusive como funcionário público em dois ministérios. Chamado de Machadinho pelos mais próximos, gostava tanto das “igrejinhas” literárias que foi um dos fundadores e presidente perpétuo da Academia Brasileira de Letras. Morreu viúvo, em 1909, na mais profunda melancolia.
Um de seus últimos textos é também dos seus melhores sonetos, dedicado à memória de sua amada Carolina. A exemplo do personagem mais célebre, não transmitiu a nenhuma criatura o legado da miséria humana. Seus filhos são seus livros, cada vez mais lidos e elogiados por personalidades como Helen Caldwell, Susan Sontag, José Saramago, Wood Allen, Harold Bloom e K. David Jackson, que, sem nenhum favor, o compara a Dostoievski.
Jorge Fernando dos Santos – Dom Total