Volto de Roma, onde participei de um seminário na Universidade Gregoriana, pensado a propósito dos cinco anos da Exortação “Amoris Laetitia” e que aconteceu apenas este ano devido à pandemia. Organização impecável, alto nível de conferencistas e debatedores, frutíferas discussões. E o consenso de que bons tempos vão sendo vividos pelas famílias cristãs com a abertura que esse grande documento pontifício traz.
A perspectiva não é a casuística estreita e legalista que fez muitos casais e famílias sofrerem, dilacerados entre a fidelidade à sua fé e sua pertença eclesial e os apelos novos e surpreendentes que a vida lhes trazia. É, ao contrário, a porta aberta e luminosa da alegria. A alegria do amor, única verdadeira. Assim quer o Papa Francisco que seja vista e concebida a família: lugar de vivência da alegria do amor.
A família é inicialmente lugar de formação a uma consciência crítica. Trata-se do primeiro fórum onde as pessoas aprendem a ler e avaliar o mundo que é sua casa. Esse fórum pedagógico é formado de pessoas que se ajudam umas às outras a tomar consciência dos desafios do mundo em que habitam para discerni-los e enfrentá-los com alegria. Isso é verdade no que diz respeito aos esposos, mas também de maneira especial quando se trata da formação das crianças. No número 261 da Amoris Laetitia, o Papa Francisco afirma que para formar moralmente uma criança é preciso ajudar a criar em seu interior, com amor, processos de maturação da liberdade de formação na cultura de uma autêntica autonomia.
Essa liberdade e autonomia levam forçosamente a que a criança possa ser e situar-se não apenas protegido e ao abrigo de todo percalço no seio da família, mas exposto aos problemas de seu meio, alguns muito duros, conflitivos e dolorosos. Porém, aí em meio a esses desafios estará sempre acompanhada, sem ser dominada ou que lhe seja imposta a leitura feita por outros. Ao revés, será instada e acompanhada para avaliar e discernir o que se lhe apresenta da realidade, a fim de poder tomar atitudes e decisões.
A tomada de consciência sobre todas as questões que a realidade lhe traz ao encontro proporciona aos jovens e adultos que formam a comunidade familiar a perplexidade diante da velocidade com a qual as coisas mudam, caracterizando uma mudança de época. E essa constatação, que aflora à consciência, leva ao espírito que atravessa do começo ao fim o documento papal: não se pode, no que diz respeito às questões de moral, simplesmente repetir fórmulas antigas que não repercutem mais nas pessoas e não fazem nem mesmo sentido para as mesmas.
A exortação Amoris Laetitia concebe – em profunda sintonia com o que diz constantemente o Papa Francisco – a vida moral baseada essencialmente nos exemplos e testemunhos. Assim, a teologia moral seria como uma pedagogia, tecida de numerosos exemplos, nos quais os casais e as famílias possam reler sua própria experiência e dela aprender. E assim crescer como comunidade. Se damos crédito ao que diz Paulo VI no documento Evangelii Nuntiandi – que as pessoas hoje em dia escutam mais as testemunhas que os mestres – estes exemplos são cruciais para a credibilidade da família enquanto instituição.
Na beleza desse desafio, a sexualidade deve ser vivida enquanto dinamismo constitutivo e essencial da vida e ser assumida na dinâmica familiar e na vida de fé em um sentido mais largo. Um verdadeiro crescimento integrado das e nas famílias não pode perder de vista que a sexualidade hoje apresenta aspectos muito diversos aos do passado, com consequências vitais igualmente diversas. Os distintos modelos de família revelam essa comunidade humana como multicêntrica e configurada em modelos muito diversos, que não podem ser ignorados.
Segundo a lógica do Evangelho, a família não existe para si mesma nem pode existir autocentrada e voltada para a consecução de sua própria virtude e excelência. Isso estabeleceria uma dicotomia malsã entre a vida privada do lar e a dimensão pública do mundo e da sociedade. A família existe no mundo e para o mundo. E é pela escuta das necessidades e prioridades deste mundo e desta sociedade que deve desenvolver sua identidade e prioridades pedagógicas e ativas. A proposta e o apelo do Evangelho dirigem-se aos que formam uma família no sentido de que ela não se autocompreenda como fim em si mesma, mas sim como uma comunidade que existe para que o mundo seja mais justo e mais humano.
A mensagem cristã não é feita para seres perfeitos, mas para seres humanos com imperfeições, ambiguidades e pecados. A Amoris Laetitia relembra à Igreja que ela deve ser capaz de dialogar com todas as pessoas, mesmo as que estariam em situação irregular perante a Igreja que amam e à qual querem continuar a pertencer. É enquanto seres criados com um corpo sexuado que a salvação nos é proposta. A Igreja não quer ser juíza implacável do modo pelo qual as pessoas administram e vivem sua sexualidade, mas apresentar-lhes a alegria do amor. Assim, a sexualidade será fonte de alegria e não de repressão, tristeza, violência, opressão. A humanização da sexualidade seria um objetivo a perseguir com a ajuda da graça.
Ao término do seminário, em encontro com o Papa Francisco, pudemos ouvir de sua boca a confirmação do vivido e refletido naqueles dias: é preciso saber buscar as fontes e a primeira raiz sem andar para trás. Anda-se para a frente, não para trás. Andar para trás não é cristão. Conciliar a fidelidade às fontes mais profundas e originárias do amor e vivê-lo caminhando para a frente é o desafio posto às famílias que hoje desejam viver a alegria desse amor.
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.