No momento em que parecia que a humanidade iria emergir do pesadelo da Covid-19, o anúncio da guerra na Ucrânia caiu como uma bomba. Não há outro assunto na mídia, levantando posições diversas sobre um e outro lado desta guerra. E o que se apresenta aos olhos de todos nós é o saldo de sempre: sangue, destruição, sofrimento, vítimas e mais vítimas, sobretudo crianças e pessoas vulneráveis das vulnerabilidades tantas que compõem o cenário da vida humana neste já avançado século XXI.
Discute-se se a guerra é justa ou não; quem tem razão e quem não tem; quais implicações tem esta ou aquela tomada de posição; que organismos internacionais devem ou não intervir.
É sempre bom ouvir o que dizem sábios e justos de outras épocas que viveram situações semelhantes. Aqui trazemos a reflexão da filósofa Simone Weil, que viveu no século XX. Nascida em 1909, viveu a Primeira Guerra mundial, lutou na Guerra Civil Espanhola e morreu durante a Segunda Guerra mundial, em 1943, aos 34 anos.
Para Simone Weil, na sociedade como no mundo a ordem resulta do jogo das forças e energias que se limitam e se equilibram. Isso para ela é a imagem da pureza, o equilíbrio entre a força da gravidade e a energia da luz. Não é possível, portanto, haver relações justas entre os seres humanos senão na medida em que uns e outros sabem limitar seus desejos e não desejam se apropriar dos objetos finitos. Pois um desejo limitado pode compor com os outros desejos que a pessoa porventura tenha e com os desejos limitados das outras pessoas.
A violência surge precisamente quando o homem começa a desejar o ilimitado, ou seja, perde o freio de seus próprios desejos e/ou quando seu desejo se encontra contrariado pelos outros. Enraíza-se, então, em um desejo ilimitado que esbarra no limite constituído pelo desejo de um outro. Para Simone Weil, a justiça e a paz só podem acontecer no momento em que os seres humanos renunciam a possuir o infinito, renunciam a desejar ilimitadamente. Se não conseguem fazer isso, é preciso que a lei os constranja a isso. A lei será o limite nas questões sociais e de luta pela justiça.
A injustiça resultaria do desequilíbrio das forças, sendo os mais fracos oprimidos pelos mais fortes. Agir pela justiça é restabelecer o equilíbrio das forças. Mas isso só é possível quando uma força impõe um limite à força que introduz o desequilíbrio.
A grande filósofa francesa está longe, portanto, de ser uma pacifista ingênua. Pelo contrário, é a favor da ação, embora reconheça que a ação sempre traz em si o peso da força. Mas não ousa estabelecer uma distinção clara entre a ação violenta e a ação não violenta, como se, para ela, o agir humano estivesse sempre “sombreado” de violência.
A violência não é somente instrumento de opressão social ou de agressão militar. É também um método de ação que parece às vezes necessário para defender a liberdade ameaçada ou para conquistá-la. Ela pode, com efeito, ser empregada a serviço de causas justas. Mas isso não a torna justa. Se parece necessária para combater a injustiça, a violência não permanece menos uma violência que machuca e fere a humanidade, tanto daquele que a sofre como daquele que a exerce.
Simone Weil lutou contra a violência enquanto pôde ao longo de toda a sua vida. Lutou com a inteligência luminosa e o extraordinário talento que possuía para pensar e escrever. Uniu-se a grupos políticos e somou-se a eles em suas lutas libertárias contra poderes opressores. E soube afastar-se deles, igualmente, quando estes a decepcionaram e não lhe pareceram fiéis e transparentes ao ideal que haviam abraçado. Escreveu muito para defender aquilo em que acreditava. Encheu folhas e folhas de papel nas situações mais incômodas e pouco propicias à escrita: no exílio, no campo de refugiados, no barco que a levava em plena guerra juntamente com seus pais para os Estados Unidos etc. E se preocupou de, antes de partir para o exílio, entregar seus escritos a pessoas em quem confiava, a fim de que fossem divulgados e pudessem ajudar outras pessoas.
A vida e o pensamento desta pensadora nos interpelam hoje, quando presenciamos nações se enfrentando e medindo forças. Na verdade, a força é, segundo ela, o que determina as relações entre os homens. E não é possível amar e ser justo senão conhecendo o império da força e sabendo não respeitá-lo. Que o mundo consiga aprender essa difícil atitude, é o que resta desejar diante da guerra que se trava neste momento, mobilizando o mundo.
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.