Em 1521, o cavaleiro espanhol Iñigo de Loyola caiu ferido em uma batalha na cidade de Pamplona. Esteve entre a vida e a morte. Depois ele passou por uma convalescência que durou quase um ano. Neste tempo, lendo a vida de Cristo e dos santos, viveu uma profunda transformação espiritual e existencial. Sua vida tomou um novo rumo e este processo continuou. Criou os Exercícios Espirituais, um caminho de busca e realização da vontade de Deus. Ele mudou seu nome para Inácio e fundou uma ordem religiosa, a Companhia de Jesus, que teve importante papel evangelizador na Era dos Descobrimentos.

Os Exercícios de Inácio, em suas diferentes modalidades, levam o fiel a reconhecer os seus movimentos interiores – pensamentos, emoções e desejos – que solicitam a própria liberdade em uma direção ou em outra. Nestas solicitações, que Inácio chama de moções, agem o Espírito de Deus ou o maligno. Ele próprio experimentou isto em sua convalescência. Quem faz os Exercícios deve discernir estes movimentos interiores, buscando a vontade de Deus e a Sua graça, voltado para o seguimento de Jesus Cristo e a configuração com Ele. Todo o processo se alicerça na certeza de que o ser humano é criado para louvar e servir a Deus, e assim alcançar a salvação; bem como na convicção de que é o mesmo Espírito que conduz Cristo e Sua esposa, a Igreja.

Comemorar os 500 anos da conversão de Santo Inácio de Loyola, é olhar com gratidão para esta mudança de vida que resultou em tanto bem. É também a oportunidade de considerar a relevância e as possibilidades destes Exercícios no presente.

Nos tempos modernos em que ele viveu, a subjetividade e a autonomia do indivíduo passaram a ter um peso crescente. Isto levou uma ampla parcela da cristandade a rejeitar a hierarquia religiosa como mediadora entre Deus e os fiéis, resultando na Reforma Protestante. No mundo católico, algumas correntes religiosas valorizavam a interioridade na relação com Deus, para além das práticas exteriores. A modernidade que germinava no tempo de Inácio cresceu e resultou na liberdade religiosa, bem como nas liberdades de consciência e de expressão. Com a secularização, a ciência alcançou autonomia e o Estado ser tornou laico. Com diferentes movimentos sociais, surgiram os direitos humanos em favor da igualdade de homem e mulher, de raças e de orientação sexual. Os estudos de gênero convergem na constatação de que não há necessariamente uma continuidade entre o sexo de uma pessoa atribuído ao nascer, a percepção de si como homem ou mulher, o desejo e a prática sexuais. Nem todos são cisgênero, isto é, identificados com o sexo atribuído ao nascer. Há também transgênero. Nem todos são heterossexuais. Há também homossexuais e bissexuais. Surgem siglas como LGBT+ para contemplar esta diversidade, cada vez mais visível na sociedade.

O papa Francisco, formado nos Exercícios Espirituais, empenha-se por uma Igreja em saída, que vá às periferias existenciais, ao encontro dos que sofrem com diversas formas de injustiças, conflitos e carências, e precisam da luz do Evangelho. Ele traz novos matizes no ensinamento da Igreja e novidades na sua pastoral, seguindo a linha do Concílio Vaticano II, de releitura do Evangelho na perspectiva da cultura contemporânea. Francisco é o primeiro papa a empregar o termo gay para se referir a pessoas homossexuais, a exemplo dos movimentos sociais que abandonaram o termo homossexual por estar, na sua origem, associado a patologia. A sua interrogação se tornou célebre: “se uma pessoa é gay, busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar”?

Na base desta interrogação, está o ensinamento do Concílio sobre a autonomia e a inviolabilidade da consciência. Trata-se do direito de a pessoa agir segundo a norma reta da sua consciência, e o dever de não agir contra ela. Nela está o “sacrário da pessoa”, onde Deus está presente e se manifesta. Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos outros seres humanos no dever de buscar a verdade, e de nela resolver os problemas morais que surgem na vida individual e social. Francisco traz esta doutrina para a realidade dos LGBT+.

Ele recebeu no Vaticano um transexual e sua companheira, bem como um casal gay, aos quais tratou com muito apreço. Sobre isto, o papa explicou publicamente que as pessoas devem ser acompanhadas como Jesus as acompanharia. Em cada caso, é preciso acolher, discernir e integrar, pois isto é o que Ele faria hoje. Se existe um casal homossexual, podemos fazer pastoral com eles, avançar no encontro com Jesus Cristo. E defendeu a proteção do Estado a uniões homossexuais, ainda que não as equiparando ao matrimônio. Havendo filhos nestas uniões, Francisco chegou a aconselhar os pais a levá-los a frequentar a paróquia, expondo com transparência a situação.

Ao convocar o Sínodo dos Bispos sobre a Família, o papa trouxe estas questões. Em sua Exortação Pós-sinodal, ele trata das pessoas em situação chamada “irregular”. Não se pode dizer que todas elas vivem em pecado mortal, privadas da graça divina. Um pastor não pode aplicar a lei moral como se fossem pedras atiradas contra a vida das pessoas. Isto vale para divorciados recasados e para uniões de LGBT+. Deve-se sempre convidar as pessoas a cumprirem o mandamento supremo do amor – “amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado” – que é plenitude da lei. E também a buscar o bem possível. Pessoas em situação irregular podem viver na graça de Deus, recebendo a ajuda da Igreja que inclui os sacramentos. O confessionário não deve ser uma sala de tortura. E a eucaristia não é um prêmio para os considerados perfeitos, mas remédio e alimento aos fracos, aos que necessitam.

Passados 500 anos da conversão de Inácio de Loyola, também hoje se necessita de conversão. Os LGBT+ não são sodomitas, como aqueles do relato bíblico que tentaram praticar violência sexual contra os hóspedes do patriarca Ló. Não são pessoas abomináveis que atraem a ira divina ou levem a sociedade à destruição. Tampouco elas escolheram a sua orientação sexual ou identidade de gênero. Deus as criou assim. Devem ser amadas e amar-se a si mesmas como Deus as fez. A estas pessoas devem ser apresentados o jugo leve e o fardo suave de Jesus. Devem ser curadas, sim, das chagas da homofobia e da transfobia que não raramente devastam. E os causadores destas chagas necessitam de conversão. Os LGBT+ têm muitos dons e talentos a serem reconhecidos e multiplicados. Todos necessitam destes dons, tanto a Igreja quanto a sociedade. Todos perdem quando elas e eles não são devidamente acolhidos ou são abertamente hostilizados, e se afastam. Desfigura-se o corpo de Cristo e Sua face amorosa. Oferece-se ao mundo um triste testemunho, uma imagem de Deus rigorista e medonha.

Os Exercícios Espirituais são um meio extraordinário de ajudar também as pessoas LGBT+. Vidas podem ser transformadas, salvas da depressão, da tristeza e do suicídio, e o mundo pode ser muito melhor. Há na criação uma diversidade muito bela, que tanto pode enriquecer a Igreja. Como dizia dom Hélder Câmara: “Faze de mim um arco-íris que acolha todas as cores em que se fragmenta a Tua luz”! Amém.

 

Luís Corrêa Lima, sacerdote jesuíta, historiador e professor da PUC-Rio