Vi o filme dirigido por Wagner Moura. Um importante documento sobre a resistência à ditadura militar e a trajetória do destacado revolucionário brasileiro dos movimentos de luta armada: Carlos Marighella. Nos ensaios, falei a atores e atrizes do filme sobre a ALN (Ação Libertadora Nacional), da qual fui militante. Sei dos desafios que Moura enfrentou para superar a falta de recursos e a censura do governo Bolsonaro.

O filme é uma preciosa peça histórica. Baseado no livro de Mauro Magalhães, Marighella – o guerrilheiro que incendiou o mundo, a mais completa biografia do líder revolucionário. Faltou, no entanto, contextualizar melhor, como fez Magalhães, as circunstâncias do envolvimento dos frades dominicanos com o assassinato de Marighella pela ditadura.

Em meados de 1967, frei Oswaldo Rezende — meu colega na Ordem Dominicana e, então, aluno da Faculdade de Filosofia da USP — acertou recebermos no parlatório do convento do bairro das Perdizes, em São Paulo, um professor interessado em conhecer melhor a renovação da Igreja Católica.

O encontro com o professor fora marcado a pedido de João Antônio Abi-Eçab, colega de Oswaldo na USP. O professor, alto, corpulento, pele morena escura, boca larga e faces alongadas, rosto firme, musculoso, cabelos pretos e ralos recuando na testa grande, dizia-se marxista e fazia-se chamar pelo nome de “Menezes”. A conversa girou em torno da história da Igreja, a importância do Concílio Vaticano II, e da visão social e política dos cristãos. Ao despedir-se, entregou-nos um embrulho em papel cor-de-rosa:

— São uns livrinhos que andei escrevendo — disse num tom de inusitada modéstia.

Vimos, tão logo deixou o convento, tratar-se de obras de Carlos Marighella — nome que, aos nossos ouvidos, não tinha, à época, qualquer ressonância especial. Eram dois livros de poesias e um opúsculo, Críticas às teses do Comitê Central.

Dias após o primeiro encontro, Oswaldo e eu estivemos de novo com Marighella nos fundos da sapataria da família de João Antônio, no bairro da Liberdade. Conversamos, então, sobre o apoio logístico que um grupo de frades dominicanos poderia oferecer à ALN, organização revolucionária fundada por ele após romper com o PCB.

Nossos contatos com Marighella amiudaram, mas as pessoas que nos serviam de ponte encontraram uma pedra em seus caminhos. João Antônio Abi-Eçab morreu em acidente de trânsito, em companhia de sua mulher, Catarina Helena Xavier Ferreira, após participar, no Rio, do assalto – comandado pelo próprio Marighella, a 13 de novembro de 1968 – ao carro pagador do Instituto de Previdência do Estado da Guanabara. No retorno a São Paulo, o carro de João Antônio colidiu com um caminhão, próximo a Vassouras. No Fusca, a polícia encontrou uma metralhadora e pentes de balas.

Reencontrei Marighella em pleno Jardim Europa, nos primeiros dias de maio de 1968. Esperei-o à noite, em um ponto de ônibus da rua Colômbia. O bairro de mansões, guardado por seguranças particulares, dispensava a vigilância das viaturas policiais. Não foi difícil adivinhar que Marighella era o homem corpulento a caminhar lentamente pela calçada, como quem dá um passeio após o jantar. A troca de olhares bastou para que eu abandonasse o ponto de ônibus e o acompanhasse. Ninguém parecia atento a nós, o que, se de um lado me tranquilizou, de outro deixou-me a dúvida se, de fato, Marighella possuía um esquema de segurança. Aliás, achei precaríssima a peruca preta que usava. Temi que mais chamasse a atenção do que disfarçasse. Era uma peruca de mulher, cortada rente às orelhas. Os fios lisos pareciam sintéticos. Como ainda não se generalizara o livre penteado para homens, dir-se-ia que ele adotara um corte à moda indígena…

Enveredamos pelas ruas escuras e arborizadas do elegante bairro, caminhando entre residências bem-protegidas por guaritas junto aos muros altos. “Lugar bem escolhido”, pensei. Como os moradores tinham carros, quase ninguém andava pelas calçadas, o que nos permitia dialogar sem o receio de ser escutado por quem passava. E certamente não seria ali, com tantos vigias armados, que a polícia se preocuparia em fazer ronda.

Ele soubera que eu iria me mudar para o Rio Grande do Sul, para cursar Teologia na escola dos jesuítas, em São Leopoldo. Queria que eu aceitasse acompanhar, em Porto Alegre, a passagem de refugiados políticos que se destinavam ao Uruguai ou à Argentina para, em seguida, viajar à Europa. Seria uma ajuda a todos que precisassem deixar o país, independentemente de siglas políticas, e não um serviço exclusivo à ALN. Aceitei o encargo, ciente de que se adequava à tradição da Igreja de auxílio a refugiados políticos:

— No momento oportuno – acrescentou Marighella – passarei a você nossos contatos nas áreas de fronteira. Agora, preciso que você assuma uma missão de urgência.

Marighella pediu que fosse a Belo Horizonte levar uma mala. Deu-me dinheiro para alugar um táxi aéreo. No dia seguinte, a encomenda me foi entregue. Pesava. Não a abri, mas fiquei com a impressão de estar repleta de dinheiro. No aeroporto de Congonhas fretei o avião, viajei à capital mineira e fui cobrir o “ponto” na rua Carangola, no bairro Santo Antônio, próxima à região em que morava minha família. Estava à espera do contato quando vi descer a rua o Alfa Romeo dirigido por minha tia Lígia. Abriguei-me numa loja, como se estivesse interessado nas mercadorias. Ela passou desacelerada, como se me buscasse. Voltei à calçada aliviado, ansioso para que o contato aparecesse logo. A posse da mala me deixava inquieto. Ao virar o rosto para o alto da ladeira, vi o carro de minha tia quebrando a esquina. Refugiei-me novamente na loja. Anos depois, indaguei a ela se havia me visto. Disse que não, fora mera coincidência.

A mala foi repassada ao contato e retornei a São Paulo com a sensação curiosa de, por um dia, ter visitado clandestinamente a cidade em que nasci e onde moravam meus pais.

Antes de me transferir para o Rio Grande do Sul, passei uma temporada escondido na mansão de Auxiliadora e Antônio Ribeiro Pena, banqueiro, aliado da ALN. Fui receber Marighella na porta do Clube Paulistano, trazido por Paulo de Tarso Venceslau, que permaneceu no carro. O líder da ALN carregava uma mala. Na mansão, indagou onde ficava o banheiro. Indiquei o do salão. Pediu que o acompanhasse. Abriu a mala, repleta de maços de dinheiro novo revestidos de invólucros do banco. Arrancou-os e jogou-os no vaso sanitário. Acendeu um fósforo e pôs fogo. O vaso rachou, inundando o salão…

De volta à calçada do clube, no qual havia uma festa, a área estava repleta de policiais militares. E o carro que levara estacionado sem o motorista. Fiquei apreensivo, ali parado ao lado do homem mais procurado pela ditadura. Logo Venceslau apareceu. Havia ido tomar café em um bar próximo.

Na primavera de 1968, voltei a encontrar Marighella no Rio. Numa Rural Willys, dirigida por um companheiro da ALN, fomos de Botafogo ao Leblon. Ao contornar a Lagoa Rodrigo de Freitas, um dos pneus furou. Ao descer para trocá-lo, um carro da polícia civil parou ao nosso lado. Julguei que seríamos presos ou, talvez, mortos. Para o nosso alívio, Marighella não foi reconhecido e os policiais queriam apenas saber se precisávamos de ajuda…

Ora, os heróis nunca morrem. Chegam a acreditar que são sempre mais espertos que a repressão. Habituados ao risco, julgam-se invisíveis. Vão a lugares onde jamais admitiriam encontrar um companheiro, como a cinemas e restaurantes. Creem que, se forem presos, não será nunca hoje, talvez amanhã. Por isso, naqueles idos, várias vezes cruzei com Marighella e outros dirigentes revolucionários na churrascaria A Toca, situada na esquina das ruas Turiassú e Cardoso de Almeida, na capital paulista. O proprietário, Jacinto Pasqualini, suava frio, ao calor das brasas que assavam as carnes, quando coincidiam, no mesmo espaço, guerrilheiros e policiais. Tratava de separá-los em mesas distantes e avisar-nos. É possível que aqueles investigadores e delegados jamais imaginassem que naquela roda alegre de chope, em torno de saborosas picanhas, estavam alguns dos mais procurados “terroristas” do país, como Aloysio Nunes Ferreira, Antônio Carlos Madeira, Rolando Fratti, Agonalto Pacheco e Carlos Marighella, cuja peruca improvisada parecia chamar mais atenção do que ele próprio.

Outro contato que tive com o líder da ALN foi para apresentar a ele Jorge de Miranda Jordão, diretor do jornal Folha da Tarde, no qual eu trabalhava. Miranda abraçou o projeto revolucionário e diversas vezes transportou Marighella, de São Paulo ao Rio, em seu Karmann-Ghia. Uma ocasião, Miranda hospedou, em sua cobertura no Cosme Velho, os dois comandantes da ALN, Marighella e Toledo. Ao se recolher a seu quarto, o anfitrião deixou a dupla na sala de jantar. Sabia que eles iriam embora dia seguinte bem cedo. Ao despertar, dona Maria, faxineira, perguntou a Miranda se crianças haviam estado no apartamento:

— Por que pergunta?

— Porque o tampo da mesa está todo marcado de desenhos.

Marighella e Toledo haviam desenhado o croquis de uma expropriação bancária em uma folha de papel manteiga.

Levei para a Folha da Tarde meu amigo franco-belga, Conrado Detrez, que assumiu a editoria internacional. Como já havia sido preso como militante da Ação Popular, ao se sentir perseguido retornou a Paris. Foi o último jornalista a entrevistar Marighella, em setembro de 1969, para a revista francesa Front. Ele retornara clandestinamente ao Brasil, via Uruguai, tendo sido recebido por mim no Rio Grande do Sul e, dali, encaminhado a São Paulo. Mais tarde, tornou-se romancista de sucesso na França, merecedor do prestigiado Prêmio Renaudot.

Marighella foi assassinado a 4 de novembro de 1969, em São Paulo. E eu preso em Porto Alegre cinco dias depois.

:: imagem – Cena do filme ‘Marighella’ (O2 Filmes/Divulgação)

 

Frei Betto
Frade dominicano, jornalista graduado e escritor brasileiro. É adepto da Teologia da Libertação, militante de movimentos pastorais e sociais. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.