Jesus, em travessia missionária, passa pela região de Tiro, Sidônia, indo até o mar da Galileia e a região da Decápole, narra o Evangelista Marcos. Nessa travessia missionária, o Mestre realiza o milagre da cura de um surdo-gago. Antes, Jesus havia acolhido o pedido de uma mãe que, com seu modo de se expressar, tocou o coração de Deus. “Por causa de tua palavra, vai: o demônio saiu de tua filha” – disse o Mestre à mulher. Jesus Mestre sublinhou que o pedido foi atendido pela força da palavra, deixando preciosa indicação: a palavra tem propriedades criativas. Não pode, pois, ser usada como instrumento de destruição ou para semear ódios. Na pedagógica narrativa do Evangelista Marcos, outra importante lição sobre a força da palavra. Jesus, já em terras dos crentes, cura um surdo-gago. Jesus tocou os ouvidos e, depois, a língua daquele homem. Olhando para o céu, o Mestre suspirou e disse: “Efatá!” (que quer dizer: Abre-te!). Com o milagre, o surdo-mudo passou a falar corretamente. No horizonte daquele homem e dos discípulos de Jesus está o compromisso de semear palavras capazes de recompor esperanças, gerar respostas e processos novos, nunca permitindo agressões à dignidade humana.

Por isso mesmo, chama a atenção as incongruências nos diferentes modos de se expressar, sinalizando fragilidades, agravadas pelas facilidades tecnológicas. O avanço da técnica pode contribuir para o desenvolvimento integral e facilitar diálogos que levem a entendimentos. Mas, tristemente, constata-se ter razão o desabafo lúcido e instigante do filósofo italiano Umberto Eco, ao sublinhar que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis. Não é uma acusação gratuita. Trata-se de diagnóstico: há grave fragilidade no desempenho da prerrogativa humana de se expressar adequadamente. Manifestações adequadas significam tecer, a partir da linguagem, entendimentos, favorecendo interpretações lúcidas. É, pois, oportunidade para se alcançar metas que promovam os direitos humanos, estimulando a solidariedade cidadã.

Na contramão do falar adequadamente está a condição contemporânea de “surdo-gago”, comprovada pelos equívocos que circulam com mais facilidade a partir das novidades tecnológicas, agravando fragilidades humanas deste tempo. A contaminação e os comprometimentos da linguagem expõem feridas que precisam ser curadas – um processo exigente e demorado, mas urgente. Sem adequado tratamento para essas feridas, a sociedade continuará a amargar muitos prejuízos, vários irreversíveis: muita gente não está tendo forças para continuar a viver – referência ao Setembro Amarelo – com estatísticas espantosas. Os entendimentos políticos, acirrados, vão se desenrolando com comprometimentos que alimentam retrocessos, manipulações e favorecimentos de oligarquias. Consequentemente, são agravadas as desigualdades sociais. O tratamento do meio ambiente está cegado por entendimentos legislativos estreitados e por posicionamentos judiciários mais burocráticos do que realistas – considerando o futuro próximo da humanidade. As consequências são desastrosas, irreversíveis, com uma visão limitada pela lógica do lucro desmedido, distanciado de dinâmicas de um desenvolvimento, efetivamente, sustentável e integral.

Neste planeta adoecido, com muitas crises, urge-se uma linguagem de reconstrução para ancorar avanços e lógicas novas pelo bem da humanidade. A recuperação da linguagem, longe de ser algo abstrato e distante, é necessária. O ser humano precisa admitir, humildemente, a sua condição de “surdo-gago”, tornando-se livre para adequadamente se expressar – isto não significa se achar no direito de espalhar o que está nos trilhos do ódio, da falta de parâmetros e das irracionalidades, sujeitas, inclusive, a penalidades judiciais. Especialmente, o adequado tratamento do dom de se expressar não pode ser confundido com certa miopia: achar, ilusoriamente, que a própria convicção é a correta, que um entendimento estreitado é a verdade, que a odiosidade pode fazer bem. Quem assim age comprova incapacidades e fragilidades encobertas por patologias e perversões psicológicas.

Há um milagre que precisa acontecer para requalificar a linguagem, em todos os níveis e âmbitos. A capacidade para se expressar precisa sempre ser precedida de adequada escuta. Hoje, fala-se muito, escuta-se pouco. No milagre narrado, Jesus toca primeiro o ouvido e, em seguida, a língua do surdo-mudo. Fundamental é escutar mais, para somente depois falar e, assim, não comprometer a força performativa da palavra. Para se expressar deve-se ter responsabilidade, cultivada a partir do exercício da escuta de cada pessoa, prioritariamente dos pobres e vulneráveis, dos clamores da casa comum. Para bem ouvir e falar, é hora de “efatá”- abre-te!

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).