Há um ano, a Organização Não Governamental Oxfam publicou a notícia segundo a qual entre os meses de março a julho de 2020, o patrimônio de 42 bilionários do Brasil tinha crescido 34 bilhões, passando de US$ 123,1 bilhões para US$ 157,1, bilhões. No dia 7 de abril deste ano, a Forbes anunciava que o número de bilionários do país tinha saltado de 45 para 65, ou seja, 20 novas fortunas ganhavam o estatuto de bilionárias. Ao mesmo tempo, nos últimos meses, vários analistas econômicos não cessam de alardear uma suposta retomada da economia nacional, com índices de crescimento que apontariam para o “início do fim da crise”, que começou em 2013 e se agudizou ao longo da pandemia.
Como não se pode “tapar o sol com a peneira” e as notícias precisam ser veiculadas de forma completa, a grande mídia também anunciou quais são os setores responsáveis pela retomada do crescimento econômico no país: fundamentalmente o agronegócio e a mineração. Alguns veículos de informação também têm dado as cifras dos efeitos da pandemia sobre os mais pobres.
Com relação ao “fim da crise”, é importante observar que, desde que assumiu o poder, o atual governo faz de tudo para “passar a boiada”, e as organizações envolvidas na defesa da Amazônia e dos povos originários não cessam de denunciar o desmonte dos órgãos que monitoram o avanço da destruição da floresta e o atual genocídio de indígenas em curso na região, através da impunidade de garimpeiros e da concessão de mineração em terras indígenas. Por sinal, muitos dos deputados e senadores que dão sustentação a esse tipo de política do atual governo são patrocinados pelo capital dessas áreas da economia nacional ou são eles mesmos seus representantes.
Muitas pessoas que se dizem cristãs, mas não gostam do discurso social da Igreja, se perguntam por que a teologia e tantas lideranças eclesiais insistem em “misturar” religião e economia, ou, em outro âmbito, fé e política. A religião não deveria se ocupar apenas das coisas espirituais? Jesus não veio anunciar um “reino dos céus”, ou seja, um mundo futuro, que diz respeito à salvação de nossas almas? Por que as igrejas não se ocupam, entã,o em oferecer um discurso e uma prática religiosa voltada para esse âmbito?
Certamente esse tipo de argumento ignora o que é próprio da fé cristã, cujas origens remontam ao judaísmo. O primeiro momento da revelação no Antigo Testamento, diretamente relacionado ao assim chamado “povo eleito”, tem em Abraão sua figura. O chamado que Deus lhe faz aponta para três promessas, todas relacionadas com a vida em suas várias dimensões: descendência, terra e o reconhecimento das demais nações (Gn 12,1-3), ou seja, a Abraão, que não tinha filhos, Deus promete uma posteridade, à qual associa uma terra, a partir da qual toda a humanidade seria abençoada.
Algo parecido acontece quando os descendentes de Abraão se tornam escravos no Egito e Deus chama Moisés para libertá-los e o levá-los à terra da promessa. Deus diz a seu enviado: “Eu vi a humilhação de meu povo no Egito e ouvi seu clamor por causa da dureza dos feitores. Sim, eu conheço seu sofrimento. Desci para livrá-los das mãos dos egípcios […] e levá-los a uma terra boa e espaçosa, terra onde corre leite e mel” (Ex 3,7-8). Não por acaso, a lei dada ao povo no caminho para a terra prometida, conclama-o ao respeito ao órfão, à viúva, ao estrangeiro, ao pobre (Dt 27,19). Essa lei é o coração da profecia em Israel, sendo muitas vezes reiterada por aqueles a quem Deus chama para seu exercício (Zc 7,10).
Jesus de Nazaré, a quem os cristãos confessam como Cristo, Senhor, Filho de Deus, é de muitas maneiras apresentado no Novo Testamento ocupado com coisas muito terrenas, como a cura dos enfermos, a partilha dos pães, a acolhida às pessoas de “má vida”, como publicanos e prostitutas. O reino que ele anunciava próximo, apesar de ser confundido por muitos cristãos como um reino meramente transcendente, pertencia a uma categoria teológica que evocava as visitas de Deus a seu povo no Antigo Testamento, dando-lhe paz numa terra da promessa, na qual todos pudessem viver em harmonia, na prática da justiça, sobretudo para com os mais vulneráveis: órfãos, viúvas, estrangeiros e pobres. O coração da fé cristã, a ressurreição, está associado a um corpo, ou seja, Deus promete a salvação definitiva que inclui não só uma alma, mas um corpo glorificado, corpo que alcançou todas as suas plenitudes, através do qual a glória divina é celebrada.
A doutrina social da Igreja e suas reiteradas denúncias às inúmeras transgressões dos direitos fundamentais da pessoa humana constitui, portanto, o cerne mesmo da fé cristã. Nesse sentido, a frase de João Paulo II, “ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”, pronunciada em 1979, no discurso inaugural da III Conferência do CELAM, em Puebla, México, é confirmada nesse enriquecimento dos mais ricos em tempos de pandemia. Ela necessita ser de novo retomada e redita, não só pela hierarquia da Igreja, mas por todos(as) os que se dizem discípulos(as) de Jesus de Nazaré.
Com efeito, o próprio Nazareno, segundo o Evangelho de Lucas, inaugura sua missão profética à luz da profecia de Isaías, segundo a qual ele tinha sido ungido e enviado para “anunciar a boa nova aos pobres, proclamar a liberdade aos cativos, fazer ver os cegos, dar a liberdade aos oprimidos e anunciar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,19). Suas bem-aventuranças, segundo o mesmo Evangelho (Lc 6,20-26), não só apontam os bem-aventurados, mas denunciam os ricos, os que se fartam, os que riem e quem é elogiado.
Corajosamente, várias instâncias da Igreja e muitos grupos comprometidos com a defesa dos povos indígenas e o cuidado da Amazônia, têm denunciado os atentados contra a vida das populações originárias daquela região, como também o desmonte das instâncias de proteção à floresta e ao que ela representa para o equilíbrio da vida no planeta. Mas, como diz a sabedoria popular, “uma andorinha só não faz verão”.
Portanto, são necessárias muitas vozes, não só as das igrejas, que possam engrossar o coro dos que se levantam contra os que têm procedido a um desmonte das leis do Estado de direito, não em função do bem da nação, mas de grupos minoritários, que se tornam cada vez mais ricos, às custas de milhões de brasileiros(as) que conhecem cada vez mais a dor da miséria.
Geraldo De Mori SJ – Dom Total