Os rumos da sociedade são definidos e alimentados por meio de narrativas, evidenciando, assim, a importância da palavra, que tem propriedade para alavancar intuições e forjar novas respostas. Mas a palavra pode, também, ser uma “pedra de tropeço”, quando se constata dificuldade para valer-se de sua força na configuração de entendimentos. A babel contemporânea comprova a frequente inabilidade para a construção de discursos. Vive-se, atualmente, em uma sociedade que tropeça nas palavras e, por isso, sofre com cenários de desentendimentos, divisões e atrasos civilizatórios. Prejuízos que podem até invalidar conquistas científicas, pois falas distantes da realidade geram obscurecimentos. O livre direito de se expressar, aliado à intrínseca necessidade da palavra para tecer nova cultura, desafia a sociedade: todos estão à mercê das consequências de falas medíocres – tropeços na palavra.
Multiplicam-se as palavras que não geram entendimentos, nem indicam novos rumos. Também não alimentam o sentido que sustenta o próprio viver. Todos têm o direito de se manifestar, mas é cada vez mais frequente os que tropeçam na palavra. Gente que diz o que não convém ou o que não edifica, formulando juízos equivocados, para simplesmente satisfazer a necessidade de se expressar de algum modo. É preciso reconhecer a carga de responsabilidade inerente a cada palavra pronunciada, particularmente na emissão de juízos, na tarefa de se construir entendimentos e interpretações para promover qualificada configuração legislativa, novo estilo de vida e amizade social. O uso da palavra deve ir além do direito de se expressar, pois essa liberdade é indissociável do compromisso com a edificação do bem, da justiça e da paz.
A qualificada cidadania tem compromisso com a palavra e jamais distancia-se da verdade. Cultiva a consciência de que a manifestação de perspectivas deve abrir caminhos, apontar soluções e respostas, sustentar a construção da fraternidade social. Cresça a consciência cidadã quanto à importância do adequado emprego das palavras, com suas propriedades construtivas, trilhando direção bem diferente dos pronunciamentos que confundem, propagam a mentira fazendo-a parecida com a verdade, esvaziando a palavra de sua força profética e poética. O mundo precisa de narrativas que gerem entendimentos e novas escolhas, indispensáveis à configuração de um tempo novo. E a palavra é instrumento fundamental para gerar um mundo aberto, sem divisões.
Pela propriedade da palavra pode-se estabelecer vínculos com o próximo, que é irmão. As ações solidárias são indispensáveis, mas há uma dimensão própria das narrativas que também é muito necessária, capaz de gerar o reconhecimento de que cada pessoa é dom precioso. A palavra precisa ser, pois, instrumento para abrir o ser humano ao amor, vencendo situações de isolamento e de mesquinhez. Assim, os discursos podem promover a corresponsabilidade entre todos os cidadãos na tarefa de edificar civilizações abertas, integradas, solidárias. A palavra também deve alimentar a qualificação existencial de cada indivíduo, livrando-o de pensamentos que levem a atitudes abomináveis. As narrativas precisam ser oportunidade para dar vez aos “sem voz”, aos discriminados, desencadeando processos de libertação e de reconquista da dignidade perdida ou usurpada. Sobre o direito do uso da palavra inscreve-se o compromisso de, por meio dela, construir a fraternidade, a liberdade e a igualdade.
O momento atual sinaliza a força da palavra na configuração de escolhas capazes de compor cenários sociopolíticos. Palavras que têm viciado mentes e estreitado corações precisam ceder lugar às que possam produzir novos sentidos. Sejam, pois, construídas as narrativas adequadas capazes de efetivar estilo de vida renovado, com diferentes modos de se habitar a casa comum e novas maneiras de se estabelecer laços, a partir do respeito à vida de cada pessoa, intocável dom sagrado de Deus. Prevaleça a desconstrução de preconceituosos e discriminações, debelando o racismo e muitos outros males que geram tanta destruição. É essencial, agora, aprender a fazer uso da palavra para não se produzir os prejuízos advindos de quem vive tropeçando na palavra.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).