É tempo de cuidar, horizonte largo e interpelante da ação emergencial promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e Cáritas Brasileira. Trata-se do prosseguimento da necessária ação em favor dos pobres e vulneráveis, apresentada na Páscoa de 2020, relançada na Páscoa deste ano – a iluminação de um olhar misericordioso e comprometido em favor dos que precisam mais. Iniciativa providencial para esse tempo de sofrimento com a pandemia. Crise sanitária sem precedentes nestas últimas décadas, que tem produzido incidências nefastas e dolorosas no tecido já esgarçado da sociedade brasileira, amentando seus rasgões, com feridas de grande gravidade humanitária.
Situação que torna ainda mais cruel os cenários da secular desigualdade da sociedade brasileira, que deve e precisa provocar os brios dos cidadãos. Esses cenários estão se agravando a tal ponto que exigem o engajamento pleno e prioritário de instituições e segmentos da sociedade. As carências alimentares, na contramão dos indicadores que mensuram e apontam a melhoria da economia, se põem como questionamento humanitário, clamando por novas posturas cidadãs. Há muita gente que acorda sem saber o que terá para comer. A situação extrema não dá a ninguém o direito de repousar sem inquietações. No ar se desenha a necessidade de uma nova lógica presidindo os conceitos da economia, exigidos a sair, celeremente, da economia que mata para uma economia solidária, de um desenvolvimento comprometido para um desenvolvimento integral. Essas metas só serão alcançadas por intermédio de lógicas novas fecundadas pelo tempero insubstituível da solidariedade.
A situação de carência extrema, sofrida por mais da metade da população brasileira, não suporta mais a prevalência da lógica da contrapartida como única possibilidade de abrir as mãos abarrotadas de recursos das pessoas bem situadas financeiramente na sociedade. Não há como exigir contrapartida quando o outro só tem a oferecer a sobrevida da fome e da miséria. Não há possibilidade para barganhas. O socorro é emergencial e urgente sob pena de esmaecer-se, de se provocar uma convulsão social que pode ser silenciosa, mas com peso de guerra.
A sociedade brasileira está desafiada a aprender uma nova lógica que não é marca de nenhuma sigla partidária. O selo é o da solidariedade. Encontrar os vulneráveis e abrir a mão e o coração para socorrê-los, é gesto necessário para possibilitar um recomeço. Embora em continuidade histórica e sobre trilhos de recursos da própria cultura e do próprio potencial, a sociedade brasileira tem que se compreender exigida à necessidade de recomeçar. Há um caos político-social, com incidências humanitárias, que requer um recomeço. Não será um recomeço do zero, mas a humilde aprendizagem a partir de uma economia com lógica completamente diferente da que está vigorando atualmente. Economia que mata muitos e privilegia regiamente uma fatia mínima da sociedade.
O Papa Francisco, na Carta Encíclica Fratelli Tutti, sublinha que durante décadas tinha-se a impressão que o mundo havia aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, caminhava para variadas formas de integração. Mas é do Papa também a afirmação que a história mostra sinais de regressão, o que leva à pergunta: a sociedade brasileira tem progressos e avanços? Indiscutivelmente. Contudo, os retrocessos são mais volumosos particularmente sobre as consequências humanitárias, evidentes nos cenários das desigualdades sociais, sempre vergonhosas e perversas. Manipulações legais e governamentais incidem com prejuízos que são aberrações irracionais em nome de uma equivocada e suicida maneira de tratar a Casa Comum.
Por isso, é hora da prática da humildade de aprendiz, fecundando a mente e os corações com o remédio da sensibilidade singular, que se pode cultivar no gesto diário de socorrer aquele que está precisando porque não tem nada e não pode esperar o depois.
A Igreja Católica, em sintonia com outras confissões religiosas e segmentos sensíveis da sociedade, com selo humanitário reconhecido, intensifica a ação emergencial solidária É Tempo de Cuidar, tecendo e fortalecendo redes de solidariedade, socorrendo pobres e vulneráveis e criando oportunidade para o exercício de novas práticas que possam contribuir na recomposição social e política do Brasil. Essa recomposição é o ato de tecer a unidade capaz de curar as divisões entre pessoas e segmentos da sociedade. Inclui-se, nesse processo, a compreensão lúcida do embate e dos cenários políticos, desafiando a cidadania a buscar uma saída ante a encruzilhada nebulosa e sem opções, carente de respostas esperançosas, com escassez de lideranças que possam oferecer soluções aos graves problemas.
Lamentavelmente, brinca-se com a sacralidade do dom da vida. Obscuridades ganham força de convencimento, a mesquinhez do lucro ilude mentes a pensar que, salvando a própria pele, se pode viver num mundo paradisíaco. Sublinha ainda o Papa Francisco, na Carta Encíclica Fratelli Tutti: “aumentam as distâncias entre as pessoas, e cresce um revés drástico, tornando lenta e dura a marcha rumo a um mundo mais unido e mais justo.” Há, sem pessimismos ou desânimos, um caos em curso, embora com sinais de saída.
A sociedade brasileira precisa reconstruir-se, intuir novas escolhas políticas e humanitárias, com repercussão na lógica da economia, distanciando-a daquela que mata, para o desabrochar de um novo tempo, num ciclo propício a uma cidadania diferente da atual. Assim, é indispensável a ajuda de analistas para o entendimento da realidade complexa, a abertura ao diálogo e a prática da solidariedade. Por isso, ecoe forte nos corações os clamores dos pobres e famintos para a preparação de uma sociedade mais fraterna e justa. Será agora significativo e determinante compreender, neste tempo, a urgência de que é tempo de cuidar.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).