A Congregação para Doutrina da Fé (CDF) publicou, com o consentimento do papa, um documento contrário à bênção de uniões de pessoas do mesmo sexo (aqui). Isto causou muita polêmica e fortes protestos. À luz das repercussões que se seguiram, pode-se fazer uma leitura da conjuntura eclesial, com suas mudanças e resistências em curso. O documento inicia com a pergunta se a Igreja dispõe de poder para abençoar tais uniões. A resposta é negativa, alegando não ser lícito conceder bênção a relações ou a parcerias estáveis que implicam prática sexual fora do matrimônio, entendido como união indissolúvel entre um homem e uma mulher, aberta à transmissão da vida. Mesmo havendo elementos positivos em uniões do mesmo sexo, em si dignos de ser apreciados e valorizados, isto não as torna honestas. Deus não abençoa nem pode abençoar o pecado.
Grupos de católicos LGBT reagiram com indignação, mas dizendo que não há surpresa. Vislumbram neste documento uma face da Igreja que Jesus Cristo criticou duramente nos doutores da lei de seu tempo, pois se interpreta a Palavra de Deus não para que haja vida e vida em abundância, mas para se fechar portas e não ir ao encontro dos fiéis. A linguagem utilizada alimenta a hostilidade, de modo que a família e a Igreja, que deveriam ser ambientes seguros para os LGBT, tornem-se lugares de violência. Por outro lado, consideram significativo a CDF ter que responder à pergunta sobre essa bênção, em vez de simplesmente ignorá-la. Talvez isto fale mais do que a resposta. E notam uma linguagem mais polida neste documento, diferente de outros anteriores. É cada vez mais difícil alguém sustentar que relações entre pessoas do mesmo sexo sejam “intrinsecamente desordenadas”. O que há de mau em uma relação amorosa? Gera-se vida para as pessoas que nela estão. Estes católicos têm o propósito de permanecer na Igreja e lhe trazer esperança. Querem ser sinais de alegrias e bênçãos do afeto e da sexualidade em suas vidas e em seus corpos.
Pais católicos de filhos LGBT também reagiram com indignação, lamentando que a pedra do “pecado” seja novamente atirada contra seus filhos. Lembram que abençoar ou bendizer é dizer o bem que existe. Reconhecem o bem existente nestes filhos e em sua capacidade de amar. Abençoam-nos hoje e vão fazê-lo sempre. Na Alemanha, 212 professores e teólogos afirmaram em manifesto que o documento da CDF carece de profundidade teológica, compreensão hermenêutica e rigor argumentativo. A vida e o amor das uniões do mesmo sexo não valem menos diante de Deus do que a vida e o amor de todas as demais uniões. Os ritos de bênção destinados a uniões do mesmo sexo, existentes em algumas comunidades, são práticas a serem valorizadas. Mais de mil padres alemães e cerca de 350 padres austríacos declararam que seguirão abençoando estas uniões.
Bispos vieram a público pedir perdão aos homossexuais ou dizer que estão envergonhados da Igreja. Um deles, bispo da Antuérpia (Bélgica), participou do Sínodo dos Bispos sobre a Família. Ele relatou que a linguagem condenatória de pecado, a respeito de uniões do mesmo sexo, foi cuidadosamente evitada pelos padres sinodais aos se referissem a este e a outros casos denominados como situações “irregulares”. A exortação pós-sinodal do papa Francisco, de 2016, seguiu a mesma linha. O cardeal Schönborn, arcebispo de Viena, declarou que uma mãe não negaria a bênção a um filho, mesmo que ele tenha problemas. Pelo contrário. Tradicionalmente se diz que a Igreja é mãe e mestra (mater et magistra). Ela tem que ensinar, mas antes de tudo é mãe. Homossexuais são sempre filhos de Deus e também desejam ver a Igreja como mãe. Esta declaração foi tão dolorosa para muitos porque é como se eles ouvissem e dissessem: “Mãe, você não vai me abençoar? Mas eu também sou seu filho”. Se o pedido de bênção não é um espetáculo, um mero rito exterior; se é sincero, em favor do caminho que duas pessoas independentemente da sua situação procuram trilhar, então a bênção não lhes será negada.
Evitar a linguagem condenatória de pecado tem sido uma postura do papa em seus encontros com pessoas LGBT. Um deles foi com um transexual e sua companheira, e outro foi com um casal gay. Todos se sentiram muito felizes e fortalecidos, sem terem ouvido qualquer palavra de condenação. Ao gay chileno Juan Carlos Cruz, que na adolescência foi vítima de abuso sexual de um sacerdote, Francisco chegou a dizer: “Juan Carlos, que você é gay não importa. Deus te fez assim e te ama assim, e eu não me importo. O papa te ama assim. Você precisa estar feliz como você é”. No documentário Francesco, de 2020, há declarações do papa em favor de direitos dos homossexuais, incluindo o reconhecimento legal civil de suas uniões, ainda que não equiparadas plenamente ao matrimônio. Isto contraria um documento da CDF feito em 2003, e constitui uma mudança de doutrina.
A própria CDF possui um importante órgão para tratar de questões da Sagrada Escritura, que é a Pontifícia Comissão Bíblica. Um documento desta comissão, de 2019, reconhece que afirmações bíblicas em âmbito cosmológico, biológico e sociológico foram gradualmente consideradas ultrapassadas com o progresso das ciências naturais e humanas. E contempla a possibilidade de se acolher as uniões do mesmo sexo como expressão legítima e digna do ser humano. Textos da Bíblia usados para reprovar a prática da homossexualidade, incluindo os mencionados no Catecismo da Igreja Católica, são reinterpretados de modo a excluir esta reprovação. Isto contrasta com a recusa a abençoar estas uniões, considerando-as taxativamente como desonestas e pecaminosas.
Curiosamente, poucos dias após a declaração da CDF, os pronunciamentos de Francisco não a respaldaram, mas seguiram uma linha bem diferente. Ele fala em assumir na própria vida a proximidade, a compaixão e a ternura de Deus; em lançar sementes de amor mesmo no terreno árido de desentendimentos e perseguições, de legalismos ou moralismos clericais (aqui). Ao homenagear Santo Afonso de Ligório, teólogo moral e doutor da Igreja, o papa afirma que este santo foi formado em uma mentalidade moral rigorista, mas se converteu à benignidade através da escuta da realidade. Ele preferiu a razão à autoridade, não se limitou à formulação teórica de princípios e se deixou desafiar pela própria vida. Colocou-se a serviço das consciências que procuram fazer o bem apesar das dificuldades, fiéis ao chamado de Deus à santidade. O anúncio do Evangelho numa sociedade que muda rapidamente, prossegue Francisco, exige a coragem de escutar a realidade, para educar as consciências a pensar de maneira diferente, em descontinuidade com o passado (aqui). Realmente são palavras que não apoiam a declaração da CDF, mas sim os que a criticam.
Não só os pronunciamentos do papa se distanciaram da CDF, mas também as suas ações. Juan Carlos Cruz, que também é jornalista, criticou fortemente a declaração contrária à bênção. E Francisco o nomeou para a Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores, órgão instituído em 2014 para combater a chaga dos abusos na Igreja.
Qual é a explicação destes contrastes? Talvez seja o que o próprio papa disse no encerramento da assembleia do Sínodo dos Bispos sobre a Família, em 2015, ao fazer um balanço das divergências e polarizações existentes: o que parece normal para um bispo de um continente, pode ser quase um escândalo para um bispo de outro continente; o que se considera violação de um direito numa sociedade, pode ser preceito óbvio e intocável em outra; o que para alguns é liberdade de consciência, para outros é só confusão. Na realidade, as culturas são muito diferentes entre si e cada princípio geral, para ser observado e aplicado, precisa ser inculturado.
Estas divergências e polarizações refletem o pluralismo que existe no mundo e na Igreja Católica. Estão em toda parte e dentro das instituições. Conhecê-las não resolve o problema, mas ajuda a refletir e a buscar caminhos. As tensões daí decorrentes podem ser dilacerantes, mas também resultar em mudanças positivas, em evolução da doutrina, como ocorreu diversas vezes na história. Que Santo Afonso de Ligório, mestre na escuta da realidade e na fidelidade ao Senhor, nos inspire e interceda por nós.
Luís Corrêa Lima – Padre jesuíta e professor do Departamento de Teologia da PUC-Rio