Nesta Sexta-feira da Paixão – a Sexta-feira Santa -, pela celebração na liturgia, grande silêncio ecoa na Terra. Silêncio provocado por um grande grito: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”. Súplica do Redentor da humanidade, Jesus Cristo, o único Senhor. O eco deste grande silêncio rasgou o véu do templo de Jerusalém, depois que uma escuridão cobriu toda a Terra até às três horas da tarde. A escuridão que marca o princípio do mundo – deserto, vazio e coberto de trevas, com o silêncio do caos. E o Espírito Criador fecunda esse silêncio com a força da criação, desdobra tudo em vida.
O eco do grande silêncio que brota do peito do crucificado não é o grito de um Deus desesperado. É Deus emprestando a força recriadora de sua voz para ecoar a dor lancinante que enjaula o coração do ser humano. A melodia é dolorosa. Um grito de desespero e de abandono profundo, que traduz o sofrimento da humanidade em cada tempo de sua história. As dores e sofrimentos humanos se manifestam, assim, pela voz de Deus compassivo, amoroso e redentor – som que irrompe com força para gerar o eco de um grande silêncio. A humanidade, enjaulada nos modos de viver que estão na contramão da vida plena, experimenta, no grito de Jesus, a possibilidade de iniciar novo ciclo. O grande silêncio com o seu eco é o reverso de toda a solidão desoladora, manifestando o caminho para fecundante escuta da voz do amor que redime e salva.
Há uma escolha: escutar o eco do grande silêncio, para transformar o coração humano e regenerar as suas fibras com amor. O grito de Jesus, que condensa a voz de toda humanidade, tem força de redenção e vida nova. Exigiu, nas minúcias de sua engenharia, a encarnação do filho de Deus que, mesmo sendo Deus, não se apegou à sua condição divina. Jesus, esvaziando-se, inigualável na sua arquitetura, se fez obediente até à morte – e morte de cruz. Ao seu nome, no céu e na terra, se dobrem os joelhos, porque Ele é o Senhor, o Salvador.
A indisposição para aprender com o grande silêncio da Sexta-feira Santa significa perder a oportunidade para amorosa escuta de Deus – leva ao risco do fracasso. Isto porque sem o grande silêncio não é possível reconhecer a gramática da vida, superando a orgulhosa vaidade que adoece, as disputas, a mesquinhez e a indiferença. A falta de hábito para lidar com o silêncio precipita o conjunto da sociedade no frenesi de um barulho ensurdecedor que fere o ser humano. Prejudica ainda a necessária capacidade para escutar, amorosamente, os clamores de outras pessoas, até daquelas com quem se convive na mesma casa. Gera indiferença em relação aos pobres e vulneráveis.
O medo do silêncio, a falta de habilidade para vivenciá-lo, explica também a causa das solidões que enlouquecem. Elas não são tratadas com o remédio que está no próprio ato de se silenciar. Busca-se a cura nos venenos que entorpecem sensibilidades, paralisam avanços na solidariedade, petrificam percepções, robotizando mentes e corações. Assim, o ser humano perde a capacidade genuína de se encantar pela palavra fecundada no silêncio necessário à escuta, à meditação. E a humanidade fica imersa em uma pobreza materializada nos calvários de muitos sofrimentos, que se perpetuam em pandemias não tratadas, devastações não denunciadas, respostas humanitárias retardadas, insanidades políticas que desconsideram a vida – o bem maior, dom pleno que custa o sangue d’Aquele que morre no alto da cruz, vencedor da morte por sua ressurreição.
No mistério deste grande silêncio, a Sexta-feira da Paixão, está a fonte da grande experiência que pode recompor sensibilidades, produzir sabedoria, revitalizar a dimensão humanística de cada pessoa. Esse é o caminho para superar leituras e práticas perversas, devolver a serenidade interior necessária a todos, capacitando o ser humano para desenvolver discursos e narrativas construtivas, urgências deste tempo de destempero e de escassez de palavras recriadoras. As lições do grande silêncio da Sexta-feira Santa fortalecem instituições a serviço da vida e dos valores fundamentais, qualificam homens e mulheres na competência para dialogar e exercer a solidariedade.
Tudo começa e alcança fecundidade pelo exercício do silêncio que evita a multiplicação de palavras distantes dos propósitos cristãos: edificar e consolar cada pessoa. O ponto de partida é dominar o medo de se silenciar, debelando o hábito de muito falar, até para tentar remediar o irremediável. Contribui para cultivar a coragem desse exercício a preciosa indicação do escritor Thomas Merton: tomar sobre si o fardo da cruz de Cristo, isto é, a humildade, a pobreza, a obediência e a renúncia, e encontrar paz para a alma. O gesto de Jesus, diz o autor, é a única e a verdadeira revolução, porque todas as outras levam a mortes. Já a revolução de Jesus significa a morte que faz brotar nova vida, renovando todas as coisas. Tudo começa e se fecunda pela atenção amorosa dada ao eco do grande silêncio desta Sexta-feira Santa, a Sexta-feira da Paixão.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).