Com quase 3.000 mortes por dia, milhares de famílias destruídas e uma sociedade que perdeu seu eixo, orar é apenas parte da reação. Junto com as preces, a ordem é lutar e resistir. Essa é a visão do padre Júlio Lancellotti.

“Orar, lutar e resistir”, sugeriu. “Temos de orar não para nos conformar. Mas para nos motivar”, disse. “A oração é compromisso com a vida. Há quem fica rezando para que o preço da gasolina baixe, num posto. A nossa oração é de luta e resistência”, disse o padre, que chacoalhou as consciências ao martelar pedras que tinham sido colocadas em um viaduto para impedir que pessoas de rua encontrassem um abrigo.

Júlio Lancellotti é um pedagogo e presbítero católico. Por 35 anos, atua como pároco da Igreja de São Miguel Arcanjo no bairro da Mooca e é vigário episcopal para a população de rua da Arquidiocese de São Paulo. Seu engajamento social despertou, nos últimos meses, o ódio da extrema-direita, que passou a atacar seu trabalho. Mas também levou o papa Francisco a telefonar a ele para dar seu apoio.

O padre não deixa dúvidas: “o governo é responsável pelo que está ocorrendo no país”. Mas ele vai além. “A responsabilidade é direta. Mas há a participação de parte da sociedade. Já dizia Simone de Beauvoir que “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos”, lembrou.

Nas ruas e dando ouvidos aos mais necessitados, padre Júlio alerta que, hoje, o país vive um “trauma”. “Estamos vivendo um momento muito angustiante e as pessoas estão procurando um ponto de lucidez”, avalia.

Para ele, não há ainda como avaliar o que será o resultado desse trauma coletivo para a sociedade brasileira. Mas está convencido de que o país vive “uma crise humanitária, com muita gente sem nenhuma proteção social e sem nenhuma forma de ajuda dentro da estrutura que existe”, disse. “Essa não é a única estrutura que existe. É a estrutura que está, hoje, posta no mundo. Uma estrutura do capital”, lembrou.

O religioso evoca o conceito do papa Francisco de pessoas descartadas. “O número de pessoas descartadas é cada vez maior”, alertou. Segundo ele, a degradação social no país ocorreu de forma gradual desde 2016. Mas se acentuou com a pandemia. A pandemia é um elemento dramático a mais em uma situação já dramática”, disse.

“A própria pandemia demonstra a falência desse modelo, inclusive da Saúde. A estrutura da Saúde não tinha como proteger o povo diante de uma nova situação”, destacou.

Padre Júlio insiste que o auxílio emergencial adotado pelo governo não foi suficiente. “Muita gente não conseguiu ter acesso”, disse, destacando como os obstáculos digitais imediatamente afastou uma parte dessas pessoas.

Mas ele alerta que, se houver um corte dessa ajuda, o Brasil viverá “uma crise humanitária sem precedentes”. O número de famintos e pessoas necessitados aumentaria”, alertou.

Uma saída só poderá ser encontrada se houver um compromisso para reduzir as desigualdades, incluindo a taxação de grandes fortunas e a redução de privilégios, incluindo para o Executivo, Judiciário e Legislativo. Um pacote apenas estará completo, em sua avaliação, com a adoção de algum tipo de renda básica.

O padre rejeita a ideia de que o atual sistema esteja esgotado. “Ele está esgotado para os pobres. Mas jamais para os ricos”, alertou. Em sua avaliação, só há como pensar em uma solução se houver uma mudança na lógica de acumulação e do enriquecimento.

Fundamentalismo religioso como instrumento
Enquanto isso, o Brasil não tem apenas miseráveis. Mas também “famintos de entendimento”, vulneráveis a um discurso do ódio.

Para ele, parte dessa estratégia envolve o uso do fundamentalismo religioso. “O pensamento de Damares Alves (ministra dos Direitos Humanos) não é só dela. O povo pensa assim. Comunista é perigoso. Há todo um pensamento forjado e estudado para fomentar a retórica do ódio e que está presente em todos os grupos sociais”, alertou. “O fundamentalismo é usado para discriminar, aumentando o moralismo excludente”, disse.

Outra estratégia recorrente é a de desqualificar o interlocutor, usando termos como “perigoso”, “abortista” ou “herege”. “Com isso, evita-se discutir o tema”, avaliou.

“Você não é um padre de verdade”
O pároco admite que já cansou de ouvir daqueles que o atacam que ele não seria realmente um religioso. “Eu ouço muito que eu não sou um padre de verdade”, disse. “Um padre que usa batina, é moralista, condena os outros. Não entra em conflito e nem questiona o sistema. O sistema é sagrado. O mundo é assim e sempre será assim”, ironizou.

Mas ele provoca. “Imediatamente, essas dizem que algumas das nossas visões vêm da Teologia da Libertação, quando nem sabem o que isso é. E pressupõe que a libertação é uma coisa ruim. Mas ai eu pergunto: qual é o contrário da Teologia da Libertação? A teologia da opressão, onde não podemos pensar, ter senso crítico e nem buscar a liberdade?”, indaga.

Padre Júlio Lancellotti – UOL Notícias