Na semana em que celebramos o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, 21 de janeiro, deveríamos estar festejando a plena liberdade de crenças, concórdia e harmonia entre os praticantes das centenas de religiões existentes no mundo. Mas, em pleno século XXI, não se passa um dia sem que surja informação de invasão de terreiro, de suástica grafitada em muro de instituição judaica, de agressões físicas ou verbais contra pessoas vestidas conforme seus preceitos religiosos.
A Casa de Cultura Fazenda Roseira, em Campinas (SP), que preserva toda a cultura do Jongo, foi saqueada. Registros de invasões e depredações de Casas de Santos se repetem pelo Brasil afora. Uma indígena da aldeia de Amambai foi brutalmente agredida, acusada de bruxaria. Reclamação recorrente por parte de Wiccanos, seguidores da antiga religião pagã que cultua a natureza. São acusados de reverenciar o mal quando só pregam o bem, o amor à natureza e aos seres vivos. São bruxos, sim. Mas bruxos do bem.
Desde 2017, uma facção de traficantes convertidos ao neo pentecostalismo invade casas de santos, proíbe cultos, expulsa religiosos das comunidades, obriga-os a destruir seus orixás, altares e objetos rituais. Nada diferente do que faziam os nazistas nas sinagogas, profanando os rolos de Torah e ateando fogo aos livros sagrados. Os bandidos obrigam os religiosos, sob a mira de fuzis, a proceder à destruição. Provavelmente com medo da “macumba”, preferem não tocar nos objetos a que conferem poderes satânicos.
Junção de traficantes e milicianos em busca da expansão de seus territórios, declaram-se crentes e ostentam, junto com a bandeira de Israel que fincam no teto de seus domínios, os nomes de “Complexo de Israel” e “Tropas de Aarão”. No seu apreço à Bíblia, alimentam antissemitismo e anti-israelismo pois, quem é agredido associa a agressão aos “bandidos de Israel”. Sentimento que corrói o tecido social e aflora despudoradamente, como o vimos em dois discursos de posse de prefeitos do Estado do Rio de Janeiro. Um, com racismo religioso; o outro antijudaico; ambos manifestando preconceitos profundamente arraigados.
O primeiro, do município de Duque de Caxias, atribuiu sua vitória a seu Deus “que é maior” e venceu todas as tratativas em contrário, inclusive a “esquina da macumba”. Já o de Rio das Ostras, ao reclamar da empresa de energia, disse que “não trabalham de graça, são igual a judeus”. E, mais adiante, “são piores do que judeus. Não liberam nada. Tudo para eles querem dinheiro. É uma covardia”… só faltou usar “judiação”. Ambos são objeto de ações impetradas pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e pela Federação Israelita do Rio de Janeiro (FIERJ), além de uma moção de repúdio emanada da sociedade civil.
O antissemitismo cresce no mundo, com depredação de cemitérios e passeatas neonazistas, mesmo em cidades onde não existe mais vida judaica. Judeus são assassinados pelos vizinhos, como uma sobrevivente do holocausto, em plena Paris. A Web se tornou espaço de disseminação do ódio antijudaico. Passados 75 anos desde o fim da Segunda Guerra Mundial e da descoberta de todos os horrores perpetrados pelo regime nazista, esperava-se que a lembrança da intolerância religiosa, em sua manifestação extrema, levasse ao entendimento de que não existe religião superior a outra. Toda crença é válida, na medida em que torna os seres humanos melhores. Infelizmente, ainda estamos longe de se tornar realidade.
A Igreja Católica vem publicando, desde o Concílio Vaticano II, com a Declaração Nostra Aetate, uma série de encíclicas revertendo o olhar do cristianismo em relação ao judaísmo e às demais religiões. Os documentos culminam com 00 (Todos Irmãos), de outubro de 2020, que conclama o resgate dos valores para a construção de “um mundo mais justo e fraterno nas suas relações quotidianas”. Reconhece que “ninguém se salva sozinho” e sonha com “uma única humanidade, em que somos todos irmãos”.
Valores e esperança comum a todos os credos, que deveria se tornar meta de cada um e uma de nós.
Diane Kuperman – conselheira do Instituto Amaivos, conselheira da Associação Religiosa Israelita-ARI, membro da CCIR