“Voltamos a sentir o cheiro original da chuva chegando”. A frase do líder quilombola Biko Rodrigues, coordenador-executivo da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e morador do quilombo do Ivaporunduva, no Vale do Ribeira, interior de São Paulo, resume a percepção do impacto da queda da poluição e da diminuição da exploração da natureza. Impacto esse causado apenas pelas adequações cotidianas em tempos de pandemia, isolamento e distanciamento social.
As mudanças de comportamento da humanidade por conta da pandemia da Covid-19 – em níveis diferentes, de acordo com cada país – alteraram a relação entre ser humano e natureza. O coronavírus e as mudanças na dinâmica da economia mundial também serviram para destacar as alternativas – tanto de produção quanto nos hábitos de consumo – para que a harmonia no planeta se fortaleça.
“A natureza está voltando a falar com a gente. Se a ganância do homem parar, se parar de pensar no dinheiro e acima de bens que são mais importantes como qualidade de vida, respirar ar puro, alimentação adequada, as coisas vão melhorar”, disse Biko.
A comunidade Ivaporunduva existe desde o século 16, é a mais antiga da região e conta com mais de 100 famílias. O quilombo foi responsável pelo resgate, no início dos anos 2000, do palmito juçara, uma planta nativa da Mata Atlântica que era considerada em extinção. A base da economia do quilombo é a produção de banana orgânica. A plantação também é aproveitada nas peças de artesanato feitas com a fibra da bananeira e vendidas pelos quilombolas. O nome Ivaporunduva significa ‘rio de muitos frutos’ e, em harmonia com a natureza, a comunidade faz jus a ele, produzindo também arroz, feijão e grande variedade de hortaliças.
Ambientalistas e cientistas acreditam que há no modelo de vida das comunidades tradicionais e dos povos originários, atrelado aos conhecimentos de desenvolvimento sustentável, um caminho para a continuidade da vida humana na Terra em harmonia ao meio ambiente.
“Os problemas ambientais impactam a sociedade de maneira desigual. Os mais pobres, em sua maioria não-brancos, estão expostos aos maiores riscos”, diz Cínthia Leone, doutora especialista em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo (USP). “A contradição é que os mais vulneráveis às crises climáticas são exatamente os que podem oferecer uma solução para ela. Ao terem sido marginalizados no interior do sistema capitalista, esses grupos foram capazes de desenvolver ou preservar modos de vidas alternativos. Eles constituem hoje uma oposição poderosa, porque oferecem algo que o modelo tradicional de desenvolvimento já não é capaz de prover: a esperança de uma vida melhor, mais saudável, mais digna”,
No começo de agosto, um artigo divulgado pela revista Proceedings of the National Academy of Sciences (PNSA) revelou que, nas áreas da região amazônica onde há demarcação de territórios indígenas, o desmatamento teve queda significativa. Em média, a preservação dessas áreas foi 60% maior do que em áreas não-demarcadas. O estudo analisou um período de 30 anos, foi feito por pesquisadores da Universidade da Califórnia (EUA) e concluiu que a preservação das tradições e do território são fundamentais para a preservação do meio ambiente.
O líder quilombola do Vale do Ribeira ressalta que a ideia dos povos tradicionais não é negar os avanços tecnológicos ou alterar o modo de vida das grandes cidades. “É lógico que não é para abrir mão de ter os bens necessários para uma vida de qualidade, mas sem precisar saquear a natureza”, afirma.
Alternativas reais
Mesmo na cidade de São Paulo, onde vivem cerca de 12 milhões de pessoas e os índices de poluição são historicamente altos, há dois exemplos de comunidades que conseguem manter o equilíbrio com a natureza e um padrão de vida saudável.
A agricultora Maria Alves da Silva, de 67 anos, morou durante 27 anos na periferia da Brasilândia na zona norte da capital. Ela é filha de agricultores da divisa de Pernambuco com a Paraíba, onde viveu até os 21 anos antes de vir para São Paulo. Desde 2002, ela vive na Comuna da Terra Irmã Alberta, do MST (Movimento dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais Sem Terra), no bairro do Perus, na zona noroeste da capital.
Sistemas de permacultura, da bioconstrução e de agrofloresta são algumas das tecnologias ambientais usados na comuna para garantir a convivência e alimentação de todos. “É mais barato. É uma construção pensada para não impactar, que leva em consideração os cuidados da natureza em todos os aspectos”, explica.
“Quando a gente pensa na natureza, na vida, a gente vê que a produção precisa ser sustentável, solidária com todas as vidas”, diz a agricultora. “Quando o processo impacta a vida humana é porque já impactou outras vidas e recursos que deveriam ser preservados. A água, o ar, os seres silvestres daquele ambiente acabam”.
Maria Alves defende que os projetos de “morte” do agronegócio devem ser substituídos por projetos de “vida”. Um estudo de 2005, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), revelou que a monocultura da soja, por exemplo, causa o desbalanceamento físico, químico e biológico do solo, o que pode levar a terra à exaustão. Além disso, os períodos de chuva nas plantações espalham os agrotóxicos, contaminando rios e reservas de água no subsolo.
“A produção em massa e o consumo desenfreado no mundo é muito prejudicial. As monoculturas, da soja, da cana, e outras commodities estão impactando o solo, que ficam desertificados. E tem o desmatamento para a criação de gado. Tudo visando o lucro, não é para resolver o problema da alimentação. Além disso, esses produtos são cheios de agrotóxicos venenosos e ainda são adicionados conservantes na industrialização. Tudo isso gera doenças e se perdem os nutrientes”, diz Maria Alves. “A gente faz parte da natureza, não podemos esgotá-la. Tem muitas vidas que as pessoas nem se dão contam, mas são essas vidas que geram outras vidas, enriquecem o solo, se harmonizam para a gente produzir alimentos de qualidade”.
No pico da Jaraguá, na zona noroeste de São Paulo, os povos Tupi e Guarani estão unidos por meio do uso das mesmas tecnologias ambientais e tradições culturais para a preservação da natureza. Ao todos, são seis aldeias na região.
“Existe uma espiritualidade, uma forma de fazer o plantio na tradição indígena. É a continuidade do modo sagrado de vida indígena que temos o dever de manter e desenvolver. Isso cria um diálogo direto tanto com o conceito de bioconstrução e os sistemas agroflorestais”, disse Thiago Henrique Karai Jekupe, 25 anos.
No sistema de monocultura, com alto custo de maquinário e agrotóxico, a produção chega ao máximo a 15 toneladas por hectare ao ano – de um único tipo de produto. No SAF (Sistema de AgroFlorestas), a produção é de 80 toneladas por hectare ao ano, com custo menor e protegendo a natureza, mesmo considerando uma perda estimada de 20%, segundo estudo do portal Agrofloresta do Futuro. Além disso, a produção é mais variada, com cerca de 12 produtos diferentes simultaneamente, e sem agrotóxicos.
“Os modelos de agrofloresta geralmente são projetados para produzir seu próprio adubo com as espécies de serviço. Que são plantas que entram no sistema para servirem com adubadeiras e produtoras de matéria orgânica para o solo. Isso é um fator de otimização de custos. Além disso, você cultiva e melhora o solo ao mesmo tempo. A monocultura garimpa o solo e deixa ele mais pobre. Quando o produtor vai plantar de novo ele precisa investir mais para produzir”, disse Rafael Rübenich, zootecnista e especialista em agronegócio e sistemas agroflorestais, do portal AgroFloresta do Futuro.
De acordo com Rübenich, a agricultura moderna convencional se desenvolveu no paradigma do tripé: Adubação, melhoramento genético e maquinário, cada um deles com custos elevados por conta dos insumos, logística e mão-de-obra.
“Porém os efeitos colaterais energéticos, ambientais e econômicos indicam que o modelo monocultural é insustentável”, disse Rübenich.
Por sua vez, a agrofloresta é um sistema que agrega aos conhecimentos agronômicos isolados uma visão sistêmica das relações entre espécies diferentes, animais e vegetais.
O especialista faz a comparação sobre o retorno econômico dos dois modelos. “Nos sistemas de monocultura você tem uma espécie produzindo em uma área em um determinado tempo. Por exemplo uma plantação de soja, de milho, de alface, de laranja, abacate, eucalipto ou mogno. Na policultura você tem algumas ou várias espécies se desenvolvendo simultaneamente produzindo em diferentes épocas do ano. Essa diversificação ou consórcio de espécies, culturas aumenta o portfólio de produtos do agricultor ou empreendedor do campo. Além de garantir um fluxo de caixa mais contínuo ao longo do ano”, disse.
No sistema de agrofloresta, a dinâmica da natureza auxilia no aumento da produtividade sem custo extra. “Em um sistema monocultural você só produz fotossíntese em apenas um andar. No sistema agroflorestal você produz em até seis andares – subterrâneo (batata), rasteiro (hortaliças), baixo (café), médio (limão), alto (abacate) e emergente Mogno. A sucessão natural trata dos ciclos. Numa monocultura você tem um ou no máximo dois ciclos de produção por ano. Como por exemplo o plantio de soja e de milho. O tempo entre o plantio e a colheita é entre 3 e 8 meses. Na agrofloresta pode se explorar ciclos com colheitas a partir de 20 dias (hortaliças), 90 dias (milho) 120 dias (verduras) um ano (batatas), 1,5 anos (banana e mamão)”, comentou.
O objetivo dos indígenas do Pico do Jaraguá é compartilhar o conhecimento e os novos aprendizados de cultivo do solo com os moradores de periferias e de favelas.
“Estamos em parceria com coletivos. Recentemente, a comunidade Vila Nova Esperança formou um projeto inspirado no nosso modo de vida, com bioconstrução e agrofloresta. Nós queremos muito isso no nosso entorno. É preciso ter o entendimento de que as favelas são os antigos quilombos, cada pessoas que está ali é herdeira dos antigos quilombos, são os sobreviventes dos massacres que ocorreram no país”, disse Jekupe.
A produção de alimentos com a preservação da natureza nas periferias dos grandes centros urbanos também pode ser uma fonte de renda e alternativa para a independência econômica.
“A produção de alimentos em solos degradados dos centros urbanos vem sendo implementada com grande publicidade em países desenvolvidos, como a Alemanha. No Brasil, nós temos uma vantagem, pois a nossa população urbana periférica foi formada a partir de um rápido e intenso êxodo rural, e essas pessoas ainda guardam o conhecimento sobre o cuidado com a terra recebido de suas famílias. Esse legado valioso pode permitir uma nova mediação das relações sociais na periferia, com o protagonismo sobretudo das mulheres, que podem encontrar na agricultura urbana um modelo de trabalho mais atraente”, disse Cínthia Leone, que também é faz parte da ONG ClimaInfo.
Juca Guimarães – Alma Preta – ECOA/UOL