Considerável parcela de minha geração foi formada na concepção de que o determinismo histórico seria inexorável e corresponderia às leis objetivas existentes no mundo natural. Mesmo reticentes a toda corrente filosófica que professa o ateísmo como convicção religiosa, muitos de nós chegaram a acreditar que as leis do materialismo dialético representavam a suprema objetivação da mente humana. Bastava saber aplicá-las aos fenômenos naturais e históricos para poder apreendê-los em sua gênese e futuro.
Com toda aquela catedral dogmática implantada na cabeça, alguns de nós entraram em contato com a física. A teoria geral da relatividade modificara o nosso conceito de tempo e espaço. Tivemos que abandonar a ideia de um amplo espaço como palco dos fenômenos físicos e de um tempo que, à parte, flui no mesmo ritmo, do passado ao futuro, via presente. Orígenes supunha que o tempo é ilimitado e infindável. Ora, o tempo, como o espaço, nasceu com o Universo. Antes que algo fosse, tempo e espaço também não eram.
Surpreendemo-nos, entretanto, ainda apegados a velhas concepções. Não é fácil abandonar arraigados paradigmas. Trafegamos, confusos, pelo método empírico-indutivo de Bacon, a filosofia analítica-dedutiva de Descartes, a física mecanicista de Newton, perplexos diante do espetáculo “pós-moderno” onde “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Olhamos para trás, vemos o passado de nossas vidas, da história de nosso país e do mundo. Miramos em frente, desvendamos um futuro ideal, mesmo conscientes de que, quando ele se tornar presente, será diferente de nossas quimeras. O presente, sim, não passa de um ponto infinitamente pequeno, diminuta ponte entre o que foi e o que será.
Ainda assim, como conceber que o tempo não flui na direção do presente que se transmuta em passado ao prenunciar o futuro? Futuro que parece, hoje, condenado a perpetuar o presente. Quem se arrisca a predizer a morte do neoliberalismo? Ele parece tão sólido quanto o socialismo soviético encarado pelos teóricos de esquerda até meados da década de 1980. Ninguém, até aquela data, previu a queda do Muro de Berlim.
O que é, tem ares de eterno. Basta conferir o empenho dos que ocupam o topo da pirâmide social com a preservação glamorosa de suas formas físicas. O elixir da eterna juventude pode, enfim, ser adquirido em qualquer academia de ginástica. Falta apenas inventar o xarope que evite a imbecilização de quem não malha o espírito e pensa que cultura é cercar-se de sofisticada parafernália eletrônica, submergido pelos encantos sensitivos do mero entretenimento.
Agora, quando se constata que alguma coisa na esfera subatômica parece contradizer todas as leis, não apenas da dialética, mas também da natureza, o determinismo histórico passa ao museu da história das ideias. Recomenda-se cautela para que não se jogue fora Marx com a água da bacia. O impacto quântico é mais forte do que se pensa. O próprio Einstein relutou em aceitar os desafios da esfera quântica. Parecia-lhe intolerável a ideia de que um elétron exposto à radiação possa, “por sua livre vontade” – como disse ao físico alemão Max Born – escolher que direção tomar. Na esfera do infinitamente pequeno, a ciência é obrigada a ingressar no imprevisível e obscuro reino das probabilidades.
O princípio da indeterminação, descoberto por outro físico alemão, Werner Heisenberg, revoluciona nossa percepção da natureza e da história. E nos faz tomar consciência de que, na natureza, a incerteza quântica não se faz presente apenas nas partículas subatômicas. Bilhões de anos após a predominância quântica no alvorecer do Universo, um estranho e inteligente fenômeno despontaria dotado de imprevisibilidade inerente a seu livre-arbítrio: os seres humanos.
Enquanto viveu, Einstein ainda conservou a esperança de que alguém iria reatar as pontas dos fios que se haviam rompido pela força do princípio da incerteza. Perplexo diante do acaso, reagiu como um médico junto ao filho irremediavelmente doente e exclamou: “Deus não joga dados!”. Malgrado sua indignação, aí estão os dados e não há lei ou cálculo que preveja o número que vai dar. Por isso, vale perguntar se, de fato, há fronteiras definidas entre a física quântica e a filosofia, incluindo a metafísica. Não seria da espiritualidade inerente ao ser humano?
Onde estão as fronteiras, senão nos limites de nossa própria visão? Ora, o Mistério não pode ser apreendido por palavras ou equações. Ainda é comum encontrarmos pessoas que acreditam que há duas realidades, uma profana e, outra, religiosa. A atual cosmologia, com certeza, virá ampliar os nossos horizontes e a física quântica nos ajudará a perceber que, uma vez assegurados os direitos humanos, a liberdade consistirá na ousadia de mergulhar em si mesmo, lá onde o encontro consigo faz descobrir um Outro que, não sendo eu e sendo radicalmente diferente de mim, me devolve a mim mesmo, à minha verdadeira identidade. Dessa fonte subjetiva brota a energia que deveria mover a humanidade: o amor.
Frei Betto
Frade dominicano, jornalista graduado e escritor brasileiro. É adepto da Teologia da Libertação, militante de movimentos pastorais e sociais. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.