Ainda estamos baseando esta nossa conversa e por três semanas consecutivas, retroativamente falando, no livro de Umberto Eco, traduzido do italiano para o espanhol, Migración e intolerância, 2019. Eis que o artigo da semana passada foi encerrado com a interessante afirmativa, segundo aquele autor, no sentido de que a intolerância tem raízes biológicas, se manifestando nos animais, com a marcação do território, por exemplo.
E continua Umberto Eco a afirmar que a intolerância com o diferente ou com o desconhecido é natural na criança, assim como o instinto de se apoderar de todo que a mesma deseja.
É por tal razão que a criança é educada para tolerar pouco a pouco, a exemplo da educação por ela recebida com relação ao respeito pela propriedade alheia e, antes de tudo, o controle do próprio esfíncter. Portanto, a tolerância é questão de educação. Uma questão cultural, a demonstrar o desenvolvimento de um povo e de também a interferir no nível democracia daquela gente.
Portanto, há uma preocupação, em tempos atuais, com as doutrinas das diferenças, sem um maior aprofundamento na chamada intolerância selvagem, em razão do grau de intransigência dela e de sua aceitação perante à sociedade, em um determinado momento, como ocorreu com as caças às bruxas, que não foi um produto das idades obscuras, mas sim já da Idade Média. E o pior são as justificativas teóricas, a partir de crenças particulares, para tal postura sistemática de persecução, que levou à fogueira milhares de mulheres.
Como de costume e equivocadamente, teoriza o fato já acontecido, não para repeli-lo, mas sim para justifica-lo. Portanto, não se vai na causa do acontecido. Aproveita-lo para legitimá-lo, por mais absurdo que o seja, via doutrina e muitas vezes encontra até mesmo o apoio filosófico, a exemplo do nazismo, que teve a adesão absurda de Heidegger.
E não podemos olvidar que o antissemitismo pseudocientífico surgiu no transcurso do século 19 e acabou convertendo, no século 20, em uma antropologia totalitária e em uma prática industrial de genocídio, manchando, mais uma vez, a nossa história e demonstrando como é fraca a prática dos direitos humanos, principalmente com esta absurda técnica de desumanizar as pessoas ou de coisificá-la.
É o que ocorreu com os índios e também com os escravos, eis que eram tratados como coisas e chegaram mesmo a entender, alguns teóricos, para legitimar estas atrocidades, que sequer almas estas “coisas” possuíam.
Entretanto, não se pode desprezar que, para que o genocídio de milhares de pessoas (judeus, ciganos, homossexuais, enfim, de todos que não tinham sangue puro) viesse a acontecer, primeiramente, tempos atrás, tal questão foi plantada perante a sociedade, ou seja, o ódio aos judeus, e assim nasce o antissemitismo. E bastou, séculos depois, aparecer um doido para colocar em prática todas estas ideias atrozes. Mas a tristeza maior, deste balancete de horrores, foi a que este doente mental não estava sozinho e até hoje tem adeptos mundo afora.
Assim foi que, no início do século 19, as teorias antijacobinas do complô judeu não acabaram criando um antissemitismo popular, já existente. Porém aperfeiçoaram a exploração e a explosão do ódio, ressaltando as diferenças que já existia e que sempre existirá entre as pessoas, como se fosse um defeito.
Assim é que, ainda segundo Umberto Eco, a intolerância mais perigosa é precisamente aquela que surge na ausência de qualquer doutrina, como resultado de pulsões elementares, considerando que não podem ser criticadas e, por conseguinte, não podem ser desprezadas com argumentos racionais.
Assim é que os fundamentos teóricos do livro Mein kampf (Minha vida), de Hitler) podem ser refutados, com uma bateria de argumentações bastante elementares. Entretanto, as ideais propostas por Hitler sobreviveram justamente por basear em uma intolerância selvagem, impermeável a qualquer crítica.
A título de exemplo de intolerância selvagem, Umberto Eco menciona o que sucedeu na Itália, quando 12 mil albaneses entraram naquele país em pouco tempo. E, oficialmente, o modelo foi o de acolhida destas pessoas. Entretanto e como sempre, a maior parte das pessoas que pretendia deter aquele êxodo usava de argumentos econômicos e demográficos para desmerecê-los.
Assim é que toda teoria resulta em vão, ante à intolerância sub-reptícia que ganha força dia a dia. E a intolerância selvagem é baseada em um curto-circuito categorial que logo oferece seus préstimos a toda futura doutrina racista. Por conseguinte, alguns daqueles albaneses que chegaram na Itália foram logo convertidos em ladrões, prostitutas, como se todos eles merecessem tal rótulo.
E podemos verificar, ainda com relação aos migrantes ou imigrantes, que essa ideologia persiste mundo afora e a justificativa para não os receber sempre é a mesma, ou seja, inventamos pretextos que acabam como verdades, para justificar nossa falta de solidariedade.
E também vários dos brasileiros acabam encampando esse absurdo entendimento ou justificação, desprezando o fato de que também há intolerância com relação a nós no exterior.
Com efeito, este curto-circuito provocado pela intolerância selvagem é uma tentação constante para cada um de nós. Basta que uma maleta seja roubada em um aeroporto de um país qualquer para que voltemos para casa sustentando que temos que desconfiar das pessoas daquele país.
Temos, por conseguinte, uma tendência, nociva, de tomar o particular pelo geral, utilizando dessa estratégica para excluir pessoas, ou seja, procuramos menosprezá-la, incluir no imaginário rol de pessoas más, apenas para justificar nossos atos egoístas e desumanos.
Newton Teixeira Carvalho – Dom Total