Na semana passada falamos sobre migração e imigração, fazendo, sempre com base no livro de Umberto Eco, Migración e intolerância, de 2019, a necessária distinção entre estes dois conceitos, que repercute direta e ideologicamente na posição dos imigrantes ou migrantes nos dias atuais.

Hoje vamos dar sequência à manifestação do autor que, na segunda parte do seu livro, trabalha com a intolerância – evidentemente não apenas com relação às pessoas que não nascidas em um determinado país e que, portanto, são desprezadas por não serem cidadãs daquela localidade. A intolerância a ser analisada aqui é mais abrangente e preocupante, a que acontece diariamente.

A nossa insistência na temática é por entender que o olhar de várias pessoas sobre os imigrantes é, principalmente, de intolerância. Ainda, em razão do nacionalismo, estas pessoas são desprezadas ou, pior, servem para justificar a incompetência do governo local, a exemplo da culpa pelo desemprego, favelamento, criminalidade etc.

Alguns nacionalistas pensam que aos imigrantes somente cabe o resto, a sobra. O resto das profissões desprezadas. A sobra de alguma legislação ou a feitura de uma legislação especificamente para elas, o que acaba por reforçar a discriminação, a intolerância e o ódio.

Aliás, dentro do seu próprio país, se você não pensa ou não está em sintonia com a maioria, você também acaba discriminado e, portanto, também é um estrangeiro. Ainda não atinaram para o fato de que, em uma sociedade supercomplexa, não há mais como ditar padrão único de comportamento. Nesta sociedade, não existe mais uma única moralidade e o Estado deve ser cada vez menos paternalista e aceitar o outro em suas individualidades, em suas querências.

Assim, afirma Umberto Eco, o fundamentalismo e o integrismo são duas formas mais evidentes de intolerância. Na página 35 do seu livro, o autor acaba por demonstrar que estes dois conceitos precisam ser mais bem entendidos e que acabam, na verdade, sendo um só, ao afirmar que todos os fundamentalistas são integristas e vice-versa.

E, em termos históricos, alerta Umberto Eco, o fundamentalismo é um princípio hermenêutico, vinculado a interpretação de um livro sagrado. O fundamentalismo ocidental moderno aflorou dos ambientes protestantes dos Estados Unidos no século 19, quando tomaram a decisão de interpretar literalmente as Escrituras, sobretudo no tocante as noções de cosmologia cuja verdade parecia colocar em dúvida a ciência da época.

A partir desta interpretação literal, rechaçadas foram as interpretações alegóricas e também aquelas formas de educação que não ia ao encontro da interpretação literal dos textos bíblicos, a exemplo do que aconteceu com o darwinismo, que acabou triunfante.

Assim, estamos diante de pessoas intolerantes, que não admitem outra interpretação da Bíblia, a não ser a literal. E olha que hoje, no direito, tem essa corrente vários adeptos, que esqueceram das outras formas de interpretação, a exemplo da histórico-evolutiva, bem como da interpretação sistemática, teleológica e sociológica, necessárias em razão do dinamismo dos fatos.

E esta forma de literalismo fundamentalista é antiga, inclusive na Igreja Católica, com os debates entre os partidários da letra seca dos escritos ditos sagrados e os defensores de uma hermenêutica mais suave, a exemplo da proposta de Santo Agostinho.

E, em tempos atuais, o fundamentalismo é mais abrangente e não fica atrelado a esta ou aquela religião, dependendo, antes de tudo, do modo de pensar das pessoas. Fundamentalista é aquela pessoa que entende que a verdade resulta exclusivamente da interpretação dos textos secos das leis. O tradicionalista é, por conseguinte, um fundamentalista.

Umberto Eco acaba lançando a interessante pergunta que ele mesmo responde: O fundamentalismo é necessariamente intolerante? É no plano hermenêutico, afirma este doutrinador; porém, não é necessariamente no campo político. Para ilustrar sua resposta, Umberto Eco recorre a uma seita fundamentalista que crê que seus próprios escolhidos tem o privilégio de interpretar corretamente as Escrituras, porém, sem sustentar nenhuma forma de proselitismo e também não obriga as outras pessoas a compartilhar essas crenças ou a lutar para que uma sociedade política seja construída com base nestas “verdades”.

Entretanto, entende-se por integrismo uma tomada de posição religiosa e política segundo a qual os princípios religiosos devem converter-se, ao mesmo tempo, em modelo de vida política e fonte das leis de Estado. É o fim do Estado laico ou secular.

Portanto, se fundamentalismo e tradicionalismo são, em princípios, conservadores, existem integristas que se apresentam como progressistas e revolucionários. Há movimentos católicos integristas que não são fundamentalistas, posto que lutam por uma sociedade totalmente inspirada nos princípios religiosos, sem, entretanto, impor uma interpretação literal das Escrituras e aceitam outras ideias.

Nota-se que a intolerância é algo bem mais profundo e está na raiz de todos os fenômenos acima apontados e também no racismo, considerando que fundamentalismo, integrismo e racismo são posições teóricas que pressupõem uma doutrina. A intolerância antecede a qualquer doutrina. Umberto Eco afirma que a intolerância tem raízes biológicas, posto que se manifesta entre os animais, que marcam território e tem fundamento em reações emotivas frequentemente superficiais.

Exemplos: não suportamos os que são diferentes de nós, por causa da cor da pele, bem como em razão de falar em língua diferente da nossa. Somos intolerantes porque alguns comem rãs, cachorros, carneiro etc. ou não gostamos do outro por causa de suas tatuagens, em razão de seu estado civil de separado ou divorciado etc.

Nota-se que, no nosso dia a dia, precisamos ser vigilantes para que atos de intolerância não sejam uma constante, em prejuízo cabal para uma sociedade mais solidária, fraterna e humana.

Newton Teixeira Carvalho – Dom Total