A primeira questão é se alguma coisa vai mudar. Ou seja, a civilização passa a ter o marco de referância “pré Covid” e “pós Covid”? Há quem ache que não vai mudar nada – passado o susto, secas as lágrimas, o mundo volta à sua habitual maneira de estar, construída ao longo de séculos, e daqui a alguns anos a pandemia será apenas um episódio desagradável que só os velhos se lembram. Pode mesmo imaginar-se que, nos primeiros tempos pós confinamento, as pessoas vão a correr às lojas, restaurantes e cabeleireiros, para consumir desabridamente e compensar os tempos em que só podiam comprar alimentos básicos e medicamentos indispensáveis.

À medida que o tempo passa, confinados nos nossos espaços privados, ficamos a pensar como será depois. E quanto mais tempo passa, mais nos convencemos que mudanças são inevitáveis. (Nós, os seres humanos de todas as condições, desde os milionários de Beverly Hills aos salários mínimos das favelas do Rio.)

Há uma variante que parece lógica; quanto mais tempo a crise durar, aumenta a probabilidade de que haja mudanças – sociais, econômicas, políticas, científicas. Se for só, digamos, um ano, e o número de mortos for relativamente pequeno (relativamente, por exemplo, aos 50 milhões da gripe espanhola de 1918-20) duas temporadas de praia depois já ninguém se quer lembrar, e o establishment continuará a funcionar, a poluir, a consumir e a enganar, mantendo as desigualdades e as injustiças de sempre.

Mas não vai ser só um ano. Até a pandemia ser contida em toda a parte (uma vez que não acontece ao mesmo tempo em cada país), serem descobertos medicamentos definitivamente eficientes e chegarem a toda a gente vacinas eficientes, vão uns dois anos. A crise econômica que a pandemia já disparou, só estabilizarão as economias de todos e cada um dos países em cinco, talvez dez anos. Muita coisa terá de mudar.

O quê, essa é a pergunta de um zilhão de dólares. As respostas dividem-se. Podem classificar-de várias maneiras, mas vamos separá-las apenas entre metafísicas e tecnocráticas, para não nos perdermos num emaranhado de teorias. Em tempos de aflição, não faltam pitonizas e doutores a procurar causas e avançar soluções.

Deixemos de parte as teorias da conspiração, tipo, foram os chineses que fizeram de propósito, sacrificando milhares dos seus para depois conquistar o mundo enfraquecido, ou então foram os norte-americanos que andaram a experimentar a guerra bactereológica e o tiro saiu-lhes pela culatra.

As metafísicas podem ir desde “a vontade de Deus” à uma conjugação astral específica, passando pela “natureza a repor o equilíbrio”.

Sobre a vontade de Deus, geralmente acompanhada da afirmação que “ninguém sabe os Seus desígnios”, não há nada a dizer, uma vez que se pode aplicar a tudo de bom e mau que acontece neste mundo pecador. Mas há outras correntes espirituais – isto é, baseadas no intangível – que encontram sinais de mudança em forças diversas. E há a astrologia. Não é uma ciência, mas é uma observação empírica que tem cinco mil anos de experiência. Se a astrologia diz que uma determinada posição dos astros corresponde a uma mudança profunda de paradigma, é porque nesses cinco mil anos a mesma posição ocorreu quando houve uma mudança dessa magnitude.

É fácil não levar a sério estas elucubrações, mas não deixa de ser arrepiante verificar que algumas fazem sentido. E não se trata de prognósticos depois do jogo: há anos que os astrólogos andam a falar numa nova Era de Aquário que começaria precisamente por esta altura. Ou seja, uma ruptura entre a Era de Peixes, dominada pelo cristianismo, outra dominada por valores diferentes.

Depois há as previsões dos tecnocratas – sobretudo sociólogos e economistas. Aí é que as opiniões se dividem radicalmente. Basta ver a disputa entre dois acadêmicos europeus, Gerd Leonhard e Thomas Frey. Leonhard, surrealmente, prevê que a Europa irá emergir como nova líder global, enquanto Frey fala de uma “pandemia econômica” que eliminará todos os “players” atuais.

O economista português Luis Tavares Bravo, numa coluna no Jornal Económico, não duvida que vai mudar muita coisa no mundo “pós Covid”. Escreve ele: “as exigências que (a pandemia) poderá exigir à sociedade enquanto persistir deverão criar elevados desafios numa série de frentes, seja ao nível social, na forma como os países, instituições e cidadãos interagem entre si ou ao nível dos hábitos e costumes de cada indivíduo, seja ao nível das economias, na forma como a cadeia de produção irá sobreviver durante este período, ou, mais importante ainda, na forma como nos iremos adaptar a esta realidade que marcará também uma mudança significativa no mercado de trabalho. As respostas a estas exigências de âmbito econômico deverão assentar em larga medida numa acelerada implementação de soluções disruptivas, onde a automação e evolução digital deverão imperar como solução incontornável.”

Uma situação que ninguém duvida, uma vez que já está ocorrendo neste momento, é o enorme aumento de importância da Internet. As igrejas, normalmente rígidas, estão fazendo as suas cerimônias no YouTube; as universidades dão aulas com aplicações que permitem juntar centenas de participantes; as empresas, que já usavam esses programas, e mesmo as que se recusavam a usá-los, aderiram ao tele-trabalho; a comunicação social completou a sua adaptação ao digital (até porque as pessoas têm dificuldade em comprar as publicações impressas); as redes sociais são agora o contato entre familiares e amigos; e até a medicina tem consultas virtuais e receituário enviado para o celular. Os espetáculos, teatro e música, estão passando em streaming; e os sites de filmes, séries e documentários não estão conseguindo suprir a procura (a Netflix aconselha a ver com uma resolução mais baixa, para não sobrecarregar os servidores).

A Nascar e a Fórmula 1 (F1) aderiram às corridas virtuais, com os pilotos a correr numa versão do jogo “F1 2019”. O primeiro foi o Grande Prêmio Virtual do Bahrein, que pode ser visto no YouTube e no Facebook. Aliás, a diferença entre o jogo em alta definição e as corridas que se viam na televisão é quase imperceptível.

Além da Internet, é claro que a televisão e a rádio são mais vistas do que nunca.

Estes hábitos, criados à força pelo confinamento – que vai durar meses – continuarão depois, não só pelo hábito que se formou, como também porque até os mais renitentes perceberam que funcionam bem.

Até o crime vai ser mais cyber do que físico…

Portanto já estamos vendo como será uma parte do novo mundo saído desta crise. A outra parte, a política de cada país e as relações de poder entre os países, também deverá ser afetada. Há quem diga que as preocupações – e as políticas redutoras– com a poluição e o aquecimento global também serão mais fortes, se bem que neste aspecto somos bastante cépticos.

É interessante ler o artigo de Jill Lepore no The New Yorker com uma lista dos livros ficcionais e não tão ficcionais sobre pragas, desde o Decameron de Boccaccio (1350) e o Diário do ano da praga, de Daniel Defoe (1665), até à Praga de Camus (1947). Mas estão lá mais, muitos mais. (O The New Yorker, como todas as publicações decentes, abriu as páginas relacionadas com a pandemia.)

Quer acreditemos no mágico, quer nos fiquemos pelo científico, não há dúvidas que muita coisa vai mudar no mundo. Só pode ser para melhor, porque pior é difícil… Mas, seja o que for, que venha o mais depressa possível!

José Couto Nogueira, Dom Total