Manuel Bandeira foi quem melhor situou os escritos de Portinari. Não reduziu os poemas a meros satélites de sua obra principal. Antes, fixou passagens de alta densidade lírica, reconhecendo-lhe uma legítima herança memorial do Brasil: nos temas da infância que unem o menino impossível, de Jorge de Lima, ao menino de engenho, de José Lins do Rego. Infância pobre, entre os cafezais e o trem passando ao fundo, a visita do circo e os acrobatas. Os brinquedos improvisados, e poucos, autoproduzidos, bola, pião e bonecos. Portinari retratou essa infância, tão despojada e soberana, com aquele traço de dor, melancolia e solidão, que reconhecemos na tela e na página. Insuperáveis.

Brodósqui foi o seu motivo de mudança ou de reconversão estética, quando voltou da Europa. “Bem maior foi meu mundo no povoado e mais misterioso”, quando em “certas noites de céu estrelado e lua, ficávamos deitados na grama da igreja” ou, ainda, quando “nas noites de temporal as casuarinas choravam um choro triste”.

As lágrimas das coisas se refletem em sua poesia, extremadas, até a dissolução daquele mundo que insiste, fantasmal, no poço da memória: “tudo que me fez sofrer e me fez feliz não existe mais. Não irei ao povoado. Não verei o trem e os zebus. Não terei mais aquela luz suave e repousante”.

O objeto perdido em Portinari deu-lhe o contorno do tempo e da luz, linha, volume e perspectiva.

E porque as coisas se perderam, as árvores, as casas, o trem e os zebus, foi preciso recriá-las, na atmosfera do mistério da luz, de que Portinari era um iniciado. Mundo vibrátil, atravessado por uma piedade cósmica, em trânsito, do solitário ao coletivo: no jogo de futebol, nas cantigas de roda, no pião e no carneiro, cada qual com seus meninos, frágeis e altivos. Mesmo a visão ácida e mordente, na fome dos retirantes e nos trabalhadores do café, não perde a densidade lírica, ao mesmo tempo intensa e mitigada.

Eis a matéria de sua poesia. Não através da comparação dos meios expressivos e da possível solução de continuidade, entre a cor e a palavra.

Em vez de seguir o adágio ut pictura poesis, outro caminho se mostra mais aderente: Portinari como grande leitor de poesia, capaz de absorver os elementos fundadores da literatura brasileira no século XX, entre utopia e distopia, Macunaíma e Vidas secas, Pasárgada e as Gerais. Suas ideias se confundem com a nova geração de poetas, a mesma angústia, o mesmo desejo de reparação, com um sotaque existencial.

Despontam os poemas que ditou, com aquele sentimento do mundo, por onde brilham sinais de ausência e nostalgia entre os mortais, para tornar, quem sabe, algo mais leve o canto de nosso destino.

Espio as sombras se arrastarem/ Homens rudes e outros frágeis/ Carregando nos ombros o volume/ Pesado deste mundo.

 

Marco Lucchesi
Premiado poeta, escritor, romancista, ensaísta e tradutor, sétimo ocupante da cadeira nº15 da Academia Brasileira de Letras.