Encantar-se com a verdade pode ser importante indicativo para a recondução da sociedade na direção do bem e da justiça. O conhecimento da verdade e sua prática confeccionam o tecido de uma cultura assentada na solidariedade e na competência de prezar os valores e respeitar, incondicionalmente, a dignidade de cada pessoa. Não basta a referência à verdade objetiva de fatos e acontecimentos tratada nos parâmetros da verdade jurídica. Embora seja esse curso indispensável para equilibrar os compassos intocáveis no funcionamento de uma sociedade, não tem a força preventiva e educativa necessária. É semelhante ao apagar o fogo de incêndios que surgem a todo momento e vão se agravando, em quantidade e intensidade. Assim, torna-se impraticável dominar as labaredas em curto prazo, sem atingir a base do fogo, a exemplo do que ocorre, na atualidade, com o sistema prisional, que exige reformas radicais.

A sociedade, hoje, cruelmente, paga o preço de uma realidade carcerária organizada ora como cartel, ora com descaso e, sobretudo, sem o entendimento adequado do que é necessário para recuperar o tecido degradado da dignidade humana, em tantas pessoas que cometem crimes, transgredindo as leis. Situações análogas estão presentes em outros setores sociais que contabilizam graves prejuízos produzidos pelo comprometimento da verdade, assumida e empunhada como bandeira de honra do viver cotidiano.

Esse processo de relativização da verdade na sua formulação filosófica e conceitual compromete a sua vital assimilação na dinâmica ético moral. Abre as portas à permissividade, impedindo as substituições necessárias capazes de deter os descalabros da corrupção, da violência e da indiferença, passivos que atrasam a sociedade nos seus projetos de desenvolvimento e esgarçam as relações sociais e políticas. Relativizar a verdade produz o caos, a exemplo do que vivenciamos neste momento, atravanca o encontro de saídas para crises que, retardadas na sua solução, multiplicam esses passivos, exigindo muito mais tempo e recursos investidos para serem corrigidos.

O processo de encantar-se com a verdade, sempre libertadora, começa pela prática de atitudes muito simples, embora de grande relevância, a principal delas, banir do dia a dia o terrível costume das chamadas pequenas mentiras – ilusória preservação da própria privacidade, defesa desnecessária da individualidade, ou ainda tolice de se justificar perante fatos e pessoas. Na convivência familiar, por exemplo, essas práticas constituem-se verdadeira armação de bombas futuras, quando adultos, até inconscientemente, exercitam crianças e jovens nesse tipo de conduta. É fundamental rechaçar toda e qualquer forma de distorção da verdade, até mesmo quando a própria cultura adota como “um jeito de ser”, nunca mentir, mas jamais dizer a verdade toda. Esquece-se de que a verdade só pode ser assim considerada quando é inteira, nunca em pedaços. A sabedoria é dizer a verdade na hora certa e à pessoa certa.

Não há outro caminho para a edificação de relacionamentos autênticos e impulsionadores na direção do bem. Desde a intimidade de cada casa, de cada família, ao parlamento, nas instituições e nos ambientes de trabalho tem que valer a sinceridade no dizer e compartilhar a verdade. Ninguém há de se iludir. O alicerce da arquitetura da corrupção, devastadora da sociedade, reside na mentira e no pouco apreço pela verdade moral, valor capaz de prevenir pessoas e instituições de armar esquemas de favorecimentos e privilégios que desvirtuem os caminhos de uma sociedade justa e solidária. Assim, ao perder no coração de cada cidadão o encantamento pela verdade, a sociedade precipita-se na direção irreversível de seu fracasso.

Esse mesmo raciocínio vale no estabelecimento das relações interpessoais. Quando não se consegue ser transparente, por conveniência ou até por respeito humano, as relações sofrem abalos de grandes proporções, gerando desconfianças que varrem projetos comuns e quebram alianças de todo tipo. Quantas famílias desestruturadas, amizades de uma vida inteira desfeitas, projetos de cooperação mútua arruinados em razão da falta de apreço pela verdade, no dizer e no seu alcance moral, quebrando toda a confiança.

Essa cultura contamina a política partidária e nas instituições governamentais, que perdem a credibilidade pela ausência dessa prática doméstica de não dizer a verdade a quem precisa ouvi-la. A exemplo do que ocorre no âmbito pessoal, prevalecem o falso apreço pela autoimagem, os interesses na preservação de cargos e lugares, tudo fecundado pelo abominável costume de bajulações e interesses mesquinhos, empurrando gente a mentir e a distanciar-se do encanto pela verdade. Para obter ganhos, avanços, ou apenas para manter situações, pode parecer vantajosa a estratégia de esconder a verdade, mas não se iludam: essas conquistas não se sustentarão quando as incoerências vierem à tona.

Conhecendo a verdade é que se encontrará a verdadeira e duradoura libertação – ensina o Mestre Jesus. Vale também recorrermos a Santo Agostinho, que afirma nunca ter encontrado alguém que gostasse de ser enganado com mentiras e inverdades. Esses são ensinamentos que devem nortear a conduta humana em todos os tempos.

A sociedade contemporânea é a do cansaço. Não menos é a sociedade da mentira ou do escasso encanto pela verdade. Sua reorganização e avanços na superação das muitas crises devem ser precedidos de estratégias e políticas públicas assertivas, com investimentos prioritários nas áreas da educação, saúde, trabalho e inovações. Mas é imprescindível a atitude cidadã individual para configurar um novo rosto e um novo tecido cultural para a sociedade, retomando, assim, o encanto e gosto pela verdade, no ser e no dizer.

As necessidades de mudanças são grandes e é interminável a lista das exigências para o respeito à dignidade de cada cidadão, numa sociedade desigual como a brasileira. O caminho é longo, mas importa começar com assertividade, com o que há de mais simples. O segredo é, em tudo, no ser e no dizer, encantar- se pela verdade.

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).