Do galinheiro à praça foi sempre o caminho percorrido por Santa Dulce dos Pobres, ao escrever sua história de vida, fé e santidade – vida vivida para fazer o bem ao outro, particularmente ao pobre, ao indefeso e ao injustiçado, vítimas de sistemas e dinâmicas perversas de exploração e exclusão. Na praça, Santa Dulce sempre encontrou os pobres, os abandonados. Fez de um galinheiro o lugar primeiro da exemplaridade, do cuidado, que é selo de autenticidade da fé cristã. Santa Dulce atravessava a praça para ir do outro lado, convencer corações em favor dos pobres. São muitas as praças pelo mundo afora, com diferentes características. Da alegria à indiferença, da liberdade à rigidez, da solidariedade à frieza dos ritos, são muitos os personagens que contracenam nas praças do mundo. Alguns desses lugares não conseguem retratar e dar espaço à espontaneidade do povo, cerceando seu direito e sua vontade de expressar a alegria, a vibração. Outras praças se caracterizam pelos lugares marcados e protocolos que enjaulam a espontaneidade, suprimindo o marcante traço da identidade desses ambientes – a alegria. Mas há quem transforme praças e galinheiros. Não é simples mudar o sentido de um espaço que originalmente é um galinheiro. Galinheiro é sempre galinheiro. Só uma arte singular pode dar sentido novo à praça e ao galinheiro. Santa Dulce é detentora dessa arte e, ao ganhar a glória dos altares, presenteia o mundo com a força da sua exemplaridade.

Por isso mesmo, ecoa uma forte interpelação: qual é o segredo para fazer do galinheiro uma universidade do cuidado e da praça o lugar da alegria e do encontro? Essa interrogação tem resposta, conceitualmente bem formulada. Em Santa Dulce dos Pobres, a resposta é a lição vivida e testemunhada. Sua vida burla a rigidez de ritos e normas. Por princípio, essa transgressão pode promover o distanciamento do ideal de santidade, mas não o inviabiliza, pois o amor é maior, pode tudo e tudo refaz. Consegue dar nomes novos, desconcertar o rígido, encher de alegria o ensimesmado, revigorar o fraco e plantar audácia solidária no coração. O amor quebra os grilhões das burocracias e faz balançar as convencionalidades que engessam pessoas e, não raramente, fazem apagar a esperança.

Santa Dulce sempre foi assim, ancorada na arte musical do acordeão que tocava, como bálsamo de alegria para os corações prisioneiros, na coragem da ousadia, muitas vezes entendida como desobediência; firme e delicada, era capaz de driblar posturas enrijecidas e frias. Com leveza, sem sisudez, gerou o novo. Seu amor de Santa dos pobres aponta um caminho para a Igreja, por vezes acachapada por pesos de disputas e funcionamentos que cegam. Sua santidade mostra o caminho da salvação do mundo e da Igreja, na contramão dos que buscam o distanciamento, uma espécie de prevenção “asséptica” às proximidades. Expoentes da literatura e das artes já disseram e demonstraram que a beleza pode salvar o mundo. E Santa Dulce dos Pobres com o seu testemunho de vida comprova que a santidade entendida e vivida como afeição tem força maior para mudar mentes, vidas, corações e mundos.

A afeição da Santa brasileira, baiana, se consolida como alavanca de mudanças, com propriedades para estabelecer milhares de conexões, interligando o coração de crianças, jovens, adultos e até mesmo dos indiferentes. Mesmo quem um dia desferiu uma cusparada em seu rosto, se rende em favor dos pobres, pela força transformadora da sua afeição. Santa Dulce compartilha um segredo e ensina “o caminho das pedras” para se realizar muitos milagres. A afeição é remédio que cura os doentes, alenta os desolados, levanta os caídos, fortalece os fracos, produz a sabedoria profética com força para mudar o imutável. Quebra os grilhões de prisões que envelhecem e até esclerosam a novidade do amor de Deus. A força da afeição sustenta milagrosa e exemplarmente obras sociais, com ternura e vigor. O amor de Santa Dulce dos Pobres é lição a ser aprendida. É capaz de mudar até mesmo os que não conseguem viver amorosamente e, por isso, são incapazes de conquistar o que só o amor pode oferecer – das obras sociais às transformações no coração.

A Igreja e a sociedade devem aprender as lições oferecidas por Santa Dulce dos Pobres, para não sofrerem com desconexões e distanciamentos, com operações estéreis e de pouca credibilidade. É hora de novas dinâmicas na sociedade e na Igreja. Essa almejada novidade não é invencionice ou desconsideração dos alicerces intocáveis da fé. Trata-se de trilhar o caminho do amor, convencendo que a afeição restaura vidas, opera mudanças com maestria, atualiza linguagens, congrega pessoas, agrega parceiros, ganha os traços próprios das feições de Jesus de Nazaré, filho de Deus, Salvador do mundo, mudando vidas e corações. Transforma galinheiros em lugares especiais de cuidados. Reconfigura as praças, até aquelas de lugares marcados, normatizados por friezas e distanciamentos. É tempo de aprender os segredos da sabedoria que faz voltar aos galinheiros e convertê-los em exemplaridade, ambientes do cuidado amoroso e transformador. A partir do amor, mudar galinheiros, praças e outros lugares. É a lição de Santa Dulce dos Pobres!

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).