O tempo da Quaresma, por seus quarenta dias, é uma delicadeza de Deus. Profecia que ressoa no coração da humanidade, pela voz da Igreja Católica, com sua liturgia de rica tradição e guardiã de tesouros de sabedoria e interpelações. Desafia a sociedade, sensibilizando corações a se empenhar por um tempo novo de justiça e paz.
A Igreja Católica no Brasil, há 56 anos, a partir de sua Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), enriquece o caminho quaresmal com interpelações proféticas e indispensáveis à realidade brasileira, que geme de morte e clama por novas dinâmicas, práticas solidárias e urgentes remédios. A Campanha da Fraternidade convida os cristãos a caminhar, no tempo de seu viver, revestidos da cidadania do Reino de Deus. Isso exige marcar a cidadania civil com as feições do Reino de Deus. Compreende-se, assim, de onde vem a exigência de conversão pessoal e cidadã comprometida com transformações urgentes e inadiáveis, debelando os cenários vergonhosos de miséria, pobrezas, extermínios, corrupções e manipulações políticas.
A Igreja Católica não se ilude com projetos de poder político-partidário. Não mistura o que requer distinções. Age por uma intrínseca exigência profética, pela luz e pela força do Evangelho de Jesus Cristo, para ajudar a sociedade, a partir da experiência autêntica e comprometida de fé. Contribui para que todos reconheçam o remédio capaz de curar males e enfermidades que adoecem a humanidade: a lição do cuidado. Aprendizado que arranca indivíduos, instâncias e instituições da mesmice egocêntrica, desdobrada em ganância, nas indiferenças e nas superficialidades de escolhas para o viver – frutos das relativizações responsáveis pelo aumento das violências, dos suicídios, do esvaziamento da mente que atinge representantes do povo, governantes e líderes de diferentes segmentos, religiosos, culturais, educativos e tantos outros.
A interpelação, “Cuida dele, o remédio”, vem da sábia e magistral indicação do coração de Jesus, na parábola do Bom Samaritano, para responder, de modo assertivo e completo, à pergunta que deve ecoar no coração de cada pessoa: quem é o seu próximo? Respondê-la adequadamente é o passo fundamental para que a sociedade brasileira consiga colocar a vida em primeiro lugar. Ainda que sejam reconhecidos sinais de esperança em atitudes cidadãs, em projetos e programas envolvendo instituições e instâncias, diferentes cenários trazem exigências e urgências muito grandes e complexas. Pedem novas posturas e atitudes capazes de gerar transformações urgentes – nenhum cidadão pode se conformar, contentando-se com mediocridades.
Há muito que fazer. Basta pensar que a desigualdade é um distintivo inaceitável da sociedade brasileira, consequência de dinâmicas autodestrutivas que atacam o meio ambiente, a exemplo do desarvoro e descontrole da mineração predatória. Faltam mais compreensão e recursos humanísticos aos grandes líderes para que possam pensar adequadamente e contribuir para o fortalecimento, para a qualificação das instituições democráticas, ao invés de enfraquecê-las com ataques figadais. Sem lucidez, estão em risco patrimônios humanos, religiosos e culturais, necessários para que a sociedade avance e não se feche em estreitezas. Diferentes estatísticas mostram que a sociedade brasileira precisa mudar. Comprovam a necessidade urgente de um caminho espiritual renovador, diferente daquele que é partidário e estreitado pelo fundamentalismo de um cristianismo torto.
O caminho espiritual renovador é percorrido por uma opção que nasce da capacidade de cuidar dele, do próximo, da Casa Comum e, sobretudo, dos mais pobres e dos indefesos. Assim, a Campanha da Fraternidade neste ano, no horizonte interpelante do tempo Quaresmal – convite à conversão e às mudanças de rumos, em favor da vida – interpela cada pessoa a acolher o chamado: “Cuida dele!”. Trata-se de eficaz remédio para corrigir descompassos. A adoção das dinâmicas simples e ao mesmo tempo abrangentes dessa indicação evangélica contribuirá para que a sociedade supere violências e extermínios, indiferenças e ganâncias, impulsionando os diálogos, os entendimentos cidadãos e a democracia, urgências deste tempo.
Cuidar do próximo é espiritualidade com força para qualificar a cidadania, no horizonte da compreensão de que a vida é dom e compromisso. Urge-se uma envergadura humana e espiritual em cada pessoa, para que o cuidado com o semelhante inspire ações, tarefas e atuação em todos os âmbitos. Projeta-se, nesse horizonte de interpelação, a figura admirável de Santa Dulce dos Pobres, mulher fisicamente frágil, gigante na envergadura moral, espiritual e humana, com força para criar e perpetuar serviços transformadores, por ser fiel discípula de Jesus, por acolher, amorosamente, a mística do remédio que está no convite-convocação, ao olhar o meio ambiente, a comunidade de fé, a própria família, os pobres, o próximo: “Cuida dele!”.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).