O mais profundo, misterioso e inquietante silêncio é o da morte. Amedronta e atormenta a existência humana, escancarando a sua finitude, experimentada também nos limites das enfermidades que batem, igualmente, à porta de ricos e pobres. A finitude remete à preciosidade da vida, que é dom. Ao mesmo tempo, ensina que a igualdade pela solidariedade é caminho único para a preservação e o desabrochar do dom da vida. Práticas distantes da solidariedade submetem a humanidade a pandemias muito ameaçadoras, escancarando aos olhos de todos que as riquezas, quando tratadas mesquinhamente, de nada valem, que o poder, se não for exercido como serviço, conduz ao autoextermínio.
O silêncio das ruas – embora ainda contracenando com a indisciplina, fruto de ignorantismos – o silêncio sacro das igrejas, transferido para a assembleia orante de cada lar, o silêncio na interioridade das pessoas, todos os silêncios, nesta Sexta-feira da Paixão, são tocados pelo silêncio profundo da morte de Jesus Cristo, Salvador do mundo, Mestre e Senhor. A oferta máxima de Jesus tem força para libertar o ser humano da escravidão, da dinâmica frenética de um dia a dia enlouquecido pelo ilimitado desejo de acumular dinheiro e posses a qualquer custo, passando por cima até do próprio bem.
O profundo silêncio da morte redentora de Cristo, em obediência amorosa ao desejo de Deus, Pai de Jesus e de cada pessoa – por isso todos são irmãos uns dos outros – tem propriedades únicas. Fecunda nova compreensão e permite à humanidade trilhar caminho diferente, em um tempo privilegiado pelas descobertas da razão, mas, também, repleto de incertezas e inseguranças – consequências da falta de espiritualidade. A dimensão espiritual é a fonte verdadeira de humanismo e do autêntico sentido de pertencimento a Deus, que salva e concebe a vida em plenitude, orientada por parâmetros capazes de fazê-la ressurgir no contexto de uma humanidade solidária. A vida torna-se sábia na relação com o meio ambiente, a Casa Comum, livrando-a de depredações criminosas e extrativismos inescrupulosos.
O silêncio profundo e ensurdecedor desta Sexta-feira da Paixão, ao mergulhar a humanidade no inexplicável e interpelante mistério da morte, revela a insignificância dos bens ante o valor maior da bondade. Apura o discernimento, permitindo se reconhecer dois preocupantes grupos no contexto da civilização contemporânea: no primeiro grupo, os indiferentes e perversos, que assim o são pelo desrespeito aos valores inegociáveis da solidariedade, por desconsiderar a dignidade humana. Apropriam-se do poder balizados pela mesquinhez, alimentando práticas e hábitos que provocam adoecimentos e esgotam a humanidade. São coniventes com a destruição do meio ambiente – argumentam que isso é “progresso” ou “desenvolvimento”. No outro grupo, estão os que tentam se aproximar da espiritualidade redentora nascida da Cruz de Cristo, mas encontram-se inabilitados pela ausência de valores e princípios. Consequentemente, alimentam compreensões estreitas, responsáveis por traduções inadequadas do mistério do amor de Deus. Apegam-se a práticas religiosas superficiais e contaminadas por invencionices. Pode-se dizer que são pessoas à beira do poço de água límpida, mas sem balde para retirá-la e matar a própria sede. Adotam práticas e escolhas, embora camufladas por uma “roupagem” cristã, desprovidas da força da fé e, consequentemente, incapazes de inspirar as mudanças necessárias a este tempo.
Esses dois grupos arrastam a humanidade para o fracasso, favorecem o surgimento de loucuras, desvarios de todo tipo, conduzindo o mundo ao precipício das pandemias. O distanciamento social, o medo de adoecer e de perder a vida envolvem a sociedade com o silêncio, até aqui pouco praticado. E abraçar esse silêncio incomoda uma sociedade desorientada, exatamente por não ter o hábito de escutar. Quem não silencia fala o que não deve, compromete rumos e corre riscos. O silêncio profundo possibilita superar a escuridão existencial; conquistar a sabedoria necessária para que não haja um colapso total. A humanidade precisa deixar-se inundar pelo completo silêncio desta Sexta-feira Santa, celebração da paixão e morte de Jesus, Deus e homem, salvador e redentor.
O rumo novo para se repensar a existência requer a sabedoria de contemplar e almejar a vida eterna, fundamento de uma dinâmica espiritual capaz de garantir consistência e sentido ao viver. Sem qualificada espiritualidade os adoecimentos continuarão, os esgotamentos serão insuportáveis e as lógicas que alimentam pandemias, insuperáveis. O equilíbrio mundial precisará de nova lógica econômica, de uma política mais cidadã, de organizações mais solidárias, sem poder prescindir da espiritualidade. A dimensão espiritual é fonte de sentido, do viver alicerçado na simplicidade, focado no amor ao próximo. A fonte inesgotável desse amor, revelado na paixão, morte e ressurreição de Jesus, é Deus, bem diferente do que ensinam religiosidades mercantilistas e manipuladoras. Não vale qualquer espiritualidade. Só é curativa e sustentável aquela que se assenta sobre a esperança fidedigna, não ilusória, garantida por uma pessoa: Ele, Cristo, o incontestável em lógicas, gestos e na oferta de si. Aquele que mergulha no silêncio da morte para dela sair vitorioso e garantir vida plena a todos. A humanidade se deixe fecundar por este profundo silêncio, para devolver simplicidade à vida, ternura e alegria aos corações.
Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).