A disciplina do distanciamento social tem sido reconhecida, especialmente por autoridades de saúde, como terapêutica indispensável para o enfrentamento da pandemia da covid-19. Esse isolamento, além das considerações sobre a perspectiva da saúde ou mesmo de seus desdobramentos econômicos, inspira refletir sobre o papel da dimensão disciplinar no sustento e na promoção da vida. Cada indivíduo, com suas inserções nas redes de relação humana, desenha fluxos do tecido social e cultural a partir de hábitos, ajudando a configurar cenários sociopolíticos, religiosos e tantos outros. As ações são alimentadas por hábitos que, para serem qualificados, substituídos ou renovados, dependem visceralmente da disciplina.

Disciplina remete a aprendizagens. Aqueles que resistem ao exercício da disciplina podem estar motivados por entendimentos parciais ou equivocados. Muitos consideram uma vida disciplinada semelhante a uma “camisa de força” ou limitação indevida da própria liberdade. É preciso reconhecer a disciplina de modo diferente, entendendo a sua relação com a capacidade para aprender. A própria origem latina da palavra reporta ao sentido de aprendizagem. Torna-se importante retomar uma consideração que pode gerar incômodo ou parecer ingenuidade: todos são, o tempo todo, aprendizes, até mesmo quando há domínio sobre conteúdos e técnicas, experiências e saberes.

Nesse horizonte, é equivocado argumentar que não se pode ou não se deve mudar porque “sempre foi assim”, justificando a permanência do que pode e deve ser transformado, melhorado. Também é sinal de ingenuidade e de fracasso não se deixar interpelar pelas renovações que “pedem passagem”, exigindo aberturas, sobretudo em tempos críticos, que impõem desafios a todos. Etapas da história que apresentam os altos preços a se pagar, com sacrifício de toda natureza, inclusive de vidas humanas, em razão de hábitos e práticas que produzem diferentes esgotamentos e adoecimentos em todos os setores da sociedade.

A consideração séria e responsável dessa pandemia do novo coronavírus, com seus desdobramentos, remete a sociedade a um processo de reavaliação de hábitos e práticas, o que exige disciplina. A pandemia ameaça especialmente a vida dos mais pobres, mas não poupa ninguém, inclusive os que se acham protegidos em suas redomas caras. É uma exigência, disciplinadamente, adotar novos hábitos que estanquem esgotamentos – ambientais, sociais, políticos e até religiosos, detentores das causas evidentes e invisíveis da produção desta e de outras pandemias. Ora, uma pandemia é resultado de indisciplinas na esfera moral, desdobradas em práticas autodestrutivas, em entendimentos equivocados ou limitados pela mesquinhez. E as condutas mesquinhas enraízam-se nas idolatrias, como a do dinheiro, em mediocridades socioculturais, político-religiosas, dentre outras.

Constata-se, assim, que a humanidade está desafiada a buscar um novo rumo – o caminho certo. Contribui para seguir na direção adequada retomar a abordagem educativa do que é próprio da pedagogia da disciplina – fundamento para a promoção de hábitos e práticas diferentes, adequados à construção de um futuro melhor. Resistências à renovação já expressam sinal de irracionalidades. Curiosa é a natural pergunta sobre quando será a retomada da “normalidade”. O consenso diz que não é possível o regresso daquela realidade que antecedeu a pandemia, pois se trata de “normalidade” que leva a adoecimentos, sempre com o risco de surgir outro vírus ameaçador. Fala-se, por isso mesmo, de uma “nova normalidade”. Nessa realidade diferente, a vida precisa ser vivida em novos parâmetros, inegociáveis, orientados a partir do respeito à dignidade humana.

Na contramão desse caminho, continuará a prevalecer uma indiferença brutal, perpetuando feminicídios, extermínios de moradores de rua, de indígenas e de pobres – muitos privados de direitos fundamentais a todos. Vergonhosamente dizimados pelas pandemias da fome, da violência e da falta de condições mínimas para preservar a saúde. Um novo ciclo civilizatório é comprometido também pela irracionalidade advinda da falta de intuição e inventividade. O que fica são os espetáculos das invencionices comprobatórias de incompetências e de ilusões alimentadas por polarizações e fundamentalismos.

A disciplina é exigência para se conquistar novos hábitos que desafiam o tecido cultural, político e religioso a ter uma nova matéria prima, de qualidade, para sustentar o sonho da solidariedade que precisa se tornar realidade. A nova página que precisa ser escrita na história da civilização, pela superação do preço amargo que se está pagando, indica a necessidade da participação de todos na construção de um novo tempo. Do setor político aos lares, dos espaços públicos aos privados, das universidades às igrejas, do comum ao extraordinário, todos são desafiados a intuir novos hábitos e dinâmicas. Exercitar a nobreza da disciplina pode contribuir para efetivar um renovado jeito de ser e de conviver na sociedade.

 

Dom Walmor Oliveira de Azevedo
Arcebispo metropolitano de Belo Horizonte, Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).