O pontificado de Francisco trouxe um alento de esperança para a Igreja Católica. Como bem sublinhou Leonardo Boff, no Jornal Estado de São Paulo, o papa “trouxe esperança, alívio, alegria de viver e pensar a fé cristã. A Igreja voltou a ser um lar espiritual”. A trajetória de Francisco como bispo de Roma está ainda em seu início. São cerca de 135 dias de atuação nesse serviço eclesial, desde sua eleição em 13 de março de 2013. Antes de sua vinda ao Brasil poderia destacar dois significativos eventos que, de certa forma, preparam o clima de sua visita ao Brasil. O primeiro, em junho, de 2013, no encontro em Roma com a diretoria da Conferência Latino-Americana e Caribenha de Religiosas e Religiosos (CLAR). A conversa se deu em círculo, de forma generosa e acolhedora, como um encontro de irmãos que se estimam e se enriquecem. Foram diversos os temas debatidos: sobre a cúria romana, as correntes na Igreja, sobre a vida consagrada e a presença profética das congregações religiosas. Sobre esse último tema, o papa foi incisivo: “Abram as porta, façam algo aí onde a vida clama. Prefiro uma Igreja que se equivoca por fazer algo do que uma que adoece por ficar fechada”. Mostrou preocupação com o fechamento de certas congregações religiosas, que ficam mais “aferradas” às suas propriedades e ao dinheiro, esquecendo o traço mais vivo de seu carisma e o clamor do tempo. O segundo evento, no mês seguinte, foi a providencial visita a Lampedusa, a ilha italiana ao sul do Mediterrâneo – conhecida também como “a ilha dos desesperados” – onde já desembarcaram mais de 50 mil pessoas em fuga das guerras e fome. Na arriscada travessia, foram mais de 20 mil mortos no mar. Em Lampeduza, Francisco lançou seu grito contra “a indiferença do holocausto no mar”. Em sua forte homilia, Francisco assinalou: “Somos uma sociedade que esqueceu a experiência de chorar, de ´padecer com`: a globalização da indiferença tirou-nos a capacidade de chorar”. Ali em Lampeduza, como sinalizou Marco Politi, não ocorreu um mero exercício de retórica compassiva, mas se firmava um traço programático do pontificado de Francisco.
A viagem ao Brasil se dá nesse clima profético de Lampeduza, no mesmo mês de julho. O clima chuvoso e sombrio do país não apagou ou arrefeceu o entusiasmo de todos os jovens, crianças e adultos que o acolheram com grande carinho no país. Já em seu primeiro discurso, no Rio de Janeiro, mostrou um toque de delicadeza. Sublinha que o acesso ao povo brasileiro se dá pelo “portal do seu imenso coração”. Pede com gesto de humildade licença para entrar, batendo delicadamente nessa porta. Sublinha que não tem ouro ou prata, mas traz consigo o que tem de mais precioso: Jesus Cristo. É em seu nome que vem ao país “para alimentar a chama de amor fraterno que arde em cada coração”. Sua saudação não vem destinada apenas ao circuito da Igreja, mas volta-se para todos. Traz também consigo uma larga abertura dialogal: “A delicadeza da atenção e, se possível, a necessária empatia para estabelecer um diálogo de amigos”. Vem movido ainda por sede de paz e fome de justiça. De uma paz que seja para todos e de uma justiça que se traduza na criação de um mundo de irmãos. Como sua vinda tinha uma destinação certa, a Jornada Mundial da Juventude, seu olhar estava centrado nos jovens. A eles destina uma das partes mais contundentes de seu discurso na chegada:
“A juventude é a janela pela qual o futuro entra no mundo e, por isso, nos impõe grandes desafios. A nossa geração se demonstrará à altura da promessa contida em cada jovem quando souber abrir-lhe espaço; isso significa tutelar as condições materiais e imateriais para o seu pleno desenvolvimento; oferecer a ele fundamentos sólidos, sobre os quais construir a vida; garantir-lhe segurança e educação para que se torne aquilo que ele pode ser; transmitir-lhe valores duradouros pelos quais a vida mereça ser vivida, assegurar-lhe um horizonte transcendente que responda à sede de felicidade autêntica, suscitando nele a criatividade do bem; entregar-lhe a herança de um mundo que corresponda à medida da vida humana; despertar nele as melhores potencialidades para que seja sujeito do próprio amanhã e corresponda ao destino de todos.”
Em sua homilia na missa celebrada em Aparecida retoma essa simbologia para falar da dinâmica evangelizadora: “A Igreja, quando busca a Cristo, bate sempre à casa da Mãe e pede: ´Mostrai-nos Jesus`”. Mas quem é esse Jesus de que fala Bergoglio? Não é, sem dúvida, o Jesus das “teias metafísicas”, que se perde no abstrato, mas alguém que viveu intensamente e com coragem o exercício da vontade do Pai. É o mesmo Jesus que vem transmitir aos jovens valores que são essenciais e que facultam o exercício de construção de um mundo mais justo, solidário e fraterno. Valores que se traduzem em três posturas, pontuadas por Francisco: conservar a esperança, deixar-se surpreender por Deus e viver na alegria. Em sua estadia no Brasil, Bergoglio retomou diversas vezes os temas da esperança e da alegria. Lembrou, com ênfase, que o cristão não pode jamais perder a esperança, mesmo quando tudo parece submergir. É o luzeiro que deve animar a dinâmica do coração. E junto com a esperança, a alegria essencial, como um traço de todo o cristão.
Um dos momentos mais bonitos de sua presença no Brasil foi a visita realizada na comunidade de Varginha, no Complexo de Manguinhos, no Rio de Janeiro. Estava ali muito à vontade. Foi recebido, mesmo sob chuva intensa, com um calor humano poucas vezes visto. Foi tocante o momento em que abraçou aquelas lindas crianças, que estavam ali com sorrisos esplêndidos, sedentos e hospitaleiros. Sem pressa alguma circulou por uma rua da comunidade e demorou-se numa das casas daquela gente simples. Ali o aguardavam mais de vinte pessoas da família, envolvendo parentes que vieram da Paraíba para o evento. Tinha desde criança de 15 dias a uma idosa de 93 anos. Foram momentos de muita emoção. Durante o seu trajeto na mesma rua, o papa deparou-se com uma igreja evangélica da Assembléia de Deus. Manifestou interesse em falar com os fieis. Parou ali, rezou com os assembleianos que estavam na porta e os mesmos pediram uma bênção ao papa. Segundo o porta-voz do Vaticano, padre Federico Lombardi, “foi um momento ecumênico, espontâneo e muito bonito”.
Já na cerimônia oficial, Francisco pôde ouvir a fala de um jovem da comunidade, Rangler, que com sua esposa Joana prepararam o terreno de sua fala pastoral. Foi um discurso vigoroso, profético, corajoso, na linha das mais ousadas reflexões de nossa Igreja Latino-Americana. O papa acompanhava atento e por diversas vezes partilhava com seu rosto os traços vivos daquele discurso admoestativo. E ali perto, num grande banner, o rosto solar de Dom Oscar Romero, a abençoar aquela tarde luminosa.
Veio então a esperada mensagem de Francisco. Simples, concisa, bela e certeira. Uma palavra de calor pastoral. Começa com a imagem da porta, que virou traço comum nos seus discursos. Sinaliza que seu desejo era o de poder visitar não apenas aquela comunidade pobre, mas a “todos os bairros do País”, “bater em cada porta”, partilhar com os amigos o “cafezinho”, mas sobretudo ouvir o coração de cada um. Foram momentos muito bonitos, de emocionar… Sublinha com alegria o gesto da linda acolhida comunitária, que faz parte do cotidiano das comunidades pobres, que sabem receber e entendem de generosidade. Francisco sublinha que a riqueza verdadeira “não está nas coisas, mas no coração”. A seu ver, essa é a grande lição que a gentes simples do Brasil oferece ao mundo inteiro: a lição da solidariedade. Aproveita a ocasião para convocar todos ali ao exercício dessa solidariedade, contra a “cultura do egoísmo”: “Não se cansem de trabalhar por um mundo mais justo e mais solidário! Ninguém pode permanecer insensível às desigualdades que ainda existem no mundo”. Sua voz profética ecoa também sobre os esforços em torno da “pacificação” em curso, mas acrescenta que nenhum esforço nesse sentido “será duradouro”, produtor de harmonia e felicidade, caso venha a esquecer ou ignorar “parte de si mesma”, os mais necessitados. E pontua: “A medida da grandeza de uma sociedade é dada pelo modo como esta trata os mais necessitados”. Estava dado o recado!!! Retoma em seguida a ideia essencial da Igreja como “advogada da justiça” e “defensora dos pobres”, na linha viva do Documento de Aparecida. E os ministros devem ser servidores dessa causa, como já tinha expresso na missa realizada no Sumaré. Todos eles são “vasos de argila” e devem estar atentos contra o risco de sentimentos de superioridade que enfraquecem o dom de seu efetivo ministério. Ao final de sua mensagem o papa retoma a sua reflexão sobre os jovens. Assinala que eles são portadores de uma “sensibilidade especial frente às injustiças”, e se revoltam diante da corrupção. Para eles, a palavra do papa foi de incentivo: “Nunca desanimem, não percam a confiança, não deixem que se apague a esperança (…). Procurem ser vocês os primeiros a praticar o bem, a não se acostumarem com o mal, mas a vencê-lo”. E mais tarde, ao falar para os argentinos na Catedral do Rio, voltou a tocar no desafio das ruas: “Eu quero que a Igreja vá para as ruas, eu quero que nós nos defendamos de toda acomodação, imobilidade, clericalismo. Se a Igreja não sai às ruas, se converte numa ONG. A Igreja não pode ser uma ONG”.
Em coluna publicada no Jornal O Globo, de 24/07/2013, Elio Gaspari assinalou que Francisco é um líder carismático e um pastor que “não tem medo do povo”, e nem tem o que temer, pois sua vida é um testemunho de doação e serviço. Em sua viagem, que ainda está em curso, o papa “ensinou a um país de tropas de choque que as ruas são um lugar de todos e não é nelas que mora o perigo”. As janelas abertas de seu carro, bem como as laterais livres do papamóvel, traduzem uma simbologia de seu pontificado: de destemor e abertura ao povo. Mas também de uma agenda eclesial que envolve esperança, fé e alegria num tempo novo.
Faustino Teixeira
Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora.