Feliz ano novo aos que se habituam à ousada prática da tolerância e se desdobram em atitudes altruístas que transtornam quem vive enclausurado em efêmeras bolhas de mediocridade.

Feliz ano novo a quem afoga o coração no ódio e recorta a língua em tesouras afiadas para ultrajar o próximo. Possa ele descobrir que o direito à diversidade, inerente à natureza, induz à prudência de não traduzir a diferença por divergência.

Feliz ano novo aos que, todas as manhãs, movidos pela ânsia de se impor, enchem seus copos de fel e despejam no ralo a doçura do mel. Possam se dar conta de que inoculam em seus espíritos a seiva ácida de imponente solidão.

Feliz ano novo a quem vive em simbiose com a natureza, trata-a como mãe e filha, consciente de que ela, assim como evoluiu ao longo de bilhões de séculos sem o fator humano, pode prosseguir seu caminho sem a nossa incômoda presença.

Feliz ano novo a quem vive atordoado pela própria mente, carrega o coração inquieto, e se alimenta de migalhas atiradas pelas redes digitais. Tenha coragem de, por vezes, calar o celular, abraçar a sutil exuberância do silêncio, e dessedentar-se nas águas transparentes do mistério.

Feliz ano novo aos que escutam o clamor das pedras e veneram a imponência das montanhas, prestam atenção ao rumor das águas e à sinuosidade do voo dos pássaros, sem jamais se entregar a desvario da razão exacerbada.

Feliz ano novo a quem não se deixa atemorizar pelas trovoadas que anunciam tempestades e guarda a fé de que lagartas são prenúncios de borboletas. Lembre-se sempre que os pés de Cronos nunca cessam de caminhar, e ninguém, mesmo o senhor da mentira, tem o poder de nos roubar o futuro.

Feliz ano novo aos que miram as árvores e não percebem a floresta, e insistem em exaltar a quadratura do círculo. Abram os olhos e descubram que dormir com o inimigo é trocar o calor da cama pela gélida escuridão da tumba.

Feliz ano novo aos que se embriagam de pólvora e idolatram a Pátria A(r)mada Brasil! Inebriem-se de poesia e, desarmados, migrem para o território no qual todos se chamam de irmãos e irmãs, em esfuziante fraternura.

Feliz ano novo a quem cultiva monstros em seus jardins ressecados e atropela o próximo com desrazões ensandecidas. Tenha a ventura de ser derrubado de suas pretensas certezas forradas de arrogância e blefe.

Feliz ano novo aos que exorcizam os demônios do autoritarismo e queimam em fogueiras de indignação os fantasmas de golpes. Tenham forças para se unirem; consciência para se mobilizarem; decisão para repletar nossas ruas com a bandeira de mais democracia e menos desigualdade.

Feliz ano novo aos que tramam nas sombras sabotar a soberania popular; iludir os incautos com falsas promessas; arrancar direitos como se fossem ervas daninhas que impedem o crescimento do capital. Possam se mirar no espelho do semblante dos pobres e se indagar se vale a pena esculpir pérfidas autobiografias.

Feliz ano novo a quem se empenha em realmente fazer novo o ano que se inicia e desabrochar a felicidade nas pessoas que o cercam. E aos que circunavegam em torno do próprio umbigo e prosseguirão, ano afora, conduzidos pelas marés de infelicidade.

E feliz ano novo a todos os meus leitores e leitoras. Deus os inebrie de graças.

Frei Betto
Frade dominicano, jornalista graduado e escritor brasileiro. É adepto da Teologia da Libertação, militante de movimentos pastorais e sociais. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.