Ao tratar de espiritualidade, convém percorrer a via que vai do mais íntimo ao mais genérico – como a sociedade se organiza para assegurar vida à população. Tanto a subjetividade quanto a política são dois polos desta mesma equação chamada vida. Esta brota na sexualidade e se viabiliza, como possibilidade, nas estruturas sociais, produtivas, comerciais, ou seja, nos atos políticos.

Certa tradição atrelou a espiritualidade à moralidade e, assim, confundiu e dificultou as coisas. Por exemplo, a ideia de que um Deus distante, que habita o cume da montanha. Devemos escalá-la, levando às costas as pedras das virtudes morais. No meio da subida, pecamos, a pedra rola, e nos obriga ao eterno recomeço, como no mito de Sísifo.

Deus não está “lá em cima”. O príncipe de Florença perguntou a Galileu se ele havia visto Deus através de seu telescópio. Diante da resposta negativa, retrucou: “Como devo acreditar em seu invento se não vê Aquele que habita os céus?” Galileu respondeu: “Se Deus não se encontra em cada um de nós, ele não se encontra em lugar nenhum”.

Na espiritualidade evangélica não há montanhas a escalar, nem atestado de boa moral para se aproximar de Deus. Há Deus, que é Pai/Mãe amoroso, e nos ama incondicionalmente, não importa o que façamos, desde que abramos o coração a seu amor, como comprova a parábola do filho pródigo (Lucas 15, 11-32) e o encontro de Jesus com a samaritana (João 4, 1-42).

“Há lei para tudo, menos para o amor”, li na traseira de um caminhão na Via Dutra. O árabe que obriga a filha a casar com o vizinho é capaz de impor a sua vontade, mas não que ela ame o marido. A liberdade é a condição do amor. Em nossa liberdade podemos acolher ou não o amor de Deus. Ele, porém, sempre nos ama, pois amar é da essência mesma de seu ser.

Na parábola do filho pródigo, o moço comportado, que ficou em casa trabalhando com o pai, não teve festa. O outro, que saiu de casa e dilapidou a herança com farras, foi recebido com festa sem ter que se desculpar. Bastou o pai vê-lo retornar para preparar a festa de acolhida. “Deus amou primeiro”, diz João (1 João 4, 10). A iniciativa do amor é de Deus.

O eixo da espiritualidade de Jesus era a experiência do amor de Deus e o compromisso com os oprimidos. Em um mundo como o nosso, regido pela globocolonização ou, como prefere o professor Milton Santos, globototalitarismo neoliberal, que promove o desemprego e a exclusão social de bilhões de pessoas, a espiritualidade cristã deve manter-se atenta ao episódio do encontro de Jesus com o homem rico (Marcos 10, 17-22). Este indaga o que fazer para ganhar a vida eterna. Jesus responde: “Você conhece os mandamentos” e recita-os. Curioso que Jesus só cita os mandamentos que dizem respeito ao próximo, e nenhum que diz respeito a Deus. O homem confirma que, desde pequeno, cumpre todos.

Marcos então sublinha que “Jesus o amou” para, em seguida, recomendar ao homem: “Vai, vende os teus bens, distribui aos pobres e, depois, vem e me segue”. Diz o Evangelho que “o homem foi embora triste e aborrecido porque era muito rico”.

O curioso é que, tendo-o amado, Jesus foi exigente com ele. Eis o conceito de amor de Jesus: quem ama é verdadeiro com o outro, ainda que a verdade doa. Quem não é verdadeiro consigo mesmo e com o outro, não ama. Amar é fazer bem ao outro, ainda que ele receba isso como um mal, como o opressor indignado por lhe privarem dos meios de oprimir. Jesus, ao amar, levava as pessoas a encontrarem a verdade, mesmo que isso criasse nelas antipatia por ele, como foi o caso dos fariseus.

Ao homem rico, Jesus demonstrou que não se pode acercar-se de Deus sem assumir a luta por justiça. A exigência, que tanto frustrou a expectativa do abastado, era simples: dê o seu bem maior, a vida, à causa de libertação dos pobres. De fato, em uma sociedade desigual como a nossa, tudo que fazemos favorece um dos polos, o da opressão ou o dos oprimidos. Nossa balança pende para o lado escolhido por Jesus?

Frei Betto
Frade dominicano, jornalista graduado e escritor brasileiro. É adepto da Teologia da Libertação, militante de movimentos pastorais e sociais. Foi coordenador de Mobilização Social do programa Fome Zero.