Desde os primórdios da consciência os sentidos da visão e da escuta disputam proeminência sobre a razão.

A visão é objetiva e factual, a escuta é subjetiva e relativa. A visão instrui a razão com o passado, com o que foi registrado. A escuta instrui a razão com o futuro, com o que será interagido. A visão é o julgamento, a escuta é o estudo. A visão é a informação, a escuta o aprendizado.

E a consciência humana inclinou-se à escuta.

Primeiro porque o julgamento define uma única sentença; enquanto o estudo, através da crítica, audita seus vereditos por instâncias cada vez mais superiores. Segundo, porque a informação não é eficaz no combate à ignorância e ao preconceito da forma que é o aprendizado.

Há três tipos de ignorâncias: a leve que é “não saber”, a moderada que é “supor saber quando não sabe” e a grave que é “politizar o saber” ou “saber antes de saber”. A moderada e a grave originam o preconceito. Uma opina antes do entendimento; a outra, avalia por crença ou intolerância prévia. Numa a apreciação antecede o conceito, noutra o juízo precede a apuração.

Ou seja, o pré-conceito inviabiliza o conceito e se mostra irracional.

A visão ao pretender informar, discrimina e segrega; enquanto a escuta, no afã de descobrir, aproxima e aprecia. O salto evolutivo de cooperação humana decorre do ensino contraintuitivo aos filhos para que ao invés de ver, escutem.

Esta aposta evolutiva está estampada no mito de um único casal original para toda a espécie humana. Os sábios refletem: “Porque — independente de raça, cor ou crença — todos os humanos descendem de um único casal? Porque teria Deus criado tantos tipos e linhagens de abelhas, de peixes, ou de pássaros, e apenas uma família de humanos?”. E respondem: “Para que ninguém diga ao outro: ‘Minha ascendência é superior à sua’”.

Talvez por isso se postule em texto clássico judaico que Shem, um dos filhos de Noé era negro. Shem o pai dos semitas, de judeus e árabes. Seria esse um fato visual ou uma alegoria da escuta que afirma sermos todos negros, asiáticos, latinos, brancos ou outra categoria ocular?

Esse tem sido o esforço milenar humano: não escrutinar as diferenças do olhar, mas as semelhanças da escuta. Assim interage um humano com outro humano.

Quem sabe nas últimas semanas tenhamos reafirmado este pacto com a escuta? Quem sabe estejamos na iminência de novos pósconceitos?

 

Nilton Bonder
Rabino da Congregação Judaica do Brasil (CJB), idealizador do Midrash Centro Cultural e escritor. Autor de livros reconhecidos nacional e internacionalmente.