Entrevista para Estado da Arte

O Professor Bernardo Sorj nasceu em Montevidéu, Uruguai, e mora desde 1976 no Brasil, onde se naturalizou brasileiro. Estudou antropologia e filosofia no Uruguai, cursou o B.A. e M.A. em História e Sociologia na Universidade de Haifa, Israel, e obteve o título de Ph.D. em Sociologia na Universidade de Manchester, Inglaterra. Foi professor de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais, do Instituto de Relações Internacionais da PUC/RJ e professor titular de Sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Autor de 28 livros e mais de 100 artigos, ocupou várias cátedras e foi professor visitante em diversas universidades e centros de pesquisa na Europa e nos Estados Unidos. Foi eleito Homem de Ideias 2005. Atualmente é diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e do Projeto Plataforma Democrática.

Gentilmente, o Professor Sorj atendeu o Estado da Arte para uma conversa — conduzida por nosso editor, Gilberto Morbach — sobre seu novo livro: Em que mundo vivemos?, uma reflexão muito oportuna sobre as conflituosas e complementares relações entre dois fenômenos constitutivos do mundo contemporâneo — a democracia e o capitalismo.

Na pauta de nossa conversa, o mundo em que vivemos, o Brasil em que vivemos, esquerda e direita, populismo, autoritarismo, o governo Bolsonaro, de onde viemos e para onde podemos ir.

Professor, se hoje falamos sobre sua obra mais recente, Em Que Mundo Vivemos?, parece inevitável começar por esta pergunta: em que Brasil vivemos? Mais: como chegamos até aqui?

O Brasil é um caso particular do tema central do livro, as relações complementares, mas também conflitivas, entre capitalismo e democracia. Comecemos por um esclarecimento fundamental: a convivência social, em todos as áreas da vida, apresenta sempre dimensões conflitivas. A questão é como resolvemos os conflitos: ou eles são abafados em forma autoritária, ou são resolvidos pelo reconhecimento da legitimidade de visões diferentes e a procura de soluções negociadas.

Em grandes linhas, os conflitos entre democracia e capitalismo se apresentam em três dimensões, interligadas porem diferentes. Os conflitos socioeconômicos — como se distribui a riqueza social —; os conflitos socioculturais, em torno aos que promovem novas formas de relacionamento e expressão cultural e os que defendem crenças, normas de conduta e visões referidos a um passado, real ou imaginado; e os conflitos sociopolíticos, que refletem os desafios das instituições do sistema político de representar e responder, ao mesmo tempo, às demandas de setores particulares da população e assegurar a coesão social e o bem-estar comum.

O Brasil atual vive um momento de aguçamento dos conflitos nos três níveis. A desigualdade social tem aumentado nos últimos anos, os conflitos culturais se polarizaram pelo avanço de pautas progressistas e a reação de grupos conservadores, e o sistema político, em particular os partidos e os políticos em cargos públicos, têm apresentado enormes disfunções. A crise econômica, e a publicidade de escândalos de corrupção aceleraram o sentimento de mal-estar em vários setores da cidadania, e como a vida não aceita vazios, grupos políticos se aproveitaram da indignação da população para avançar agendas autoritárias.

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Nesse sentido, na obra, o senhor classifica o bolsonarismo como “uma versão à direita” de um “novo autoritarismo”, “legitimado por eleições enquanto mina as instituições democráticas, instrumentalizando o Poder Judiciário e demonizando a imprensa, a sociedade civil e os opositores políticos”. Ainda que gravite em torno de um centro comum aos movimentos do populismo de direita de nosso tempo, quais são as particularidades do bolsonarismo

O bolsonarismo é uma versão particular de tendência autoritárias de direita hoje presentes em vários lugares de planeta. Aliás, considero inadequado denominar esse fenômeno político como populista, pois se trata de um conceito amplo demais — muitos líderes chamados de populistas não necessariamente são autoritários —, e não explicita a caraterística central do fenômeno, seu caráter antidemocrático.

Paradoxalmente o bolsonarismo, na pratica, tem várias afinidades com a estratégia do autoritarismo de esquerda desenvolvida por Hugo Chávez. Não é casual que numa entrevista no início do mandato presidencial do venezuelano, Bolsonaro teceu os mais diversos elogios a Hugo Chávez. A afinidade inclui desde a identificação com um oficial de patente inferior que intentou inicialmente tomar o poder através de um golpe de estado com um discurso que atacava as instituições e as elites políticas, a apropriação de símbolos nacionais, a formação de milícias armadas e a cooptação da alta oficialidade com a distribuição de cargos, ou o expurgo daqueles que discordavam.

Um outra particularidade do bolsonarismo, que inclusive não está presente seja no chavismo ou em qualquer governo de extrema direita, é a apologia aberta por uma opção antidemocrática, com chamados as Forças Armadas para imporem uma ditadura (como nos atos a favor do AI-5). O bolsonarismo nesse sentido, comparado com similares no exterior, é primário, tanto pela incapacidade de desenvolver uma estratégia para avançar sua agenda política no interior do jogo das instituições existentes, como no seu apoio num ideólogo idiossincrático, Olavo de Carvalho, que gera a repulsa inclusive entre setores que apoiam, ou apoiaram, o presidente.

Em uma brilhante passagem, o senhor diz que “o conservadorismo reacionário da de direita, mas sim um rompimento com ela”. Aqueles que reivindicam o conservadorismo hoje seriam, assim, reacionários. Como o senhor explica esse processo de ruptura?

Nos países democráticos, a maioria das forças conservadoras, geralmente associadas a agendas religiosas, se adaptaram ao jogo democrático e às caraterísticas de uma sociedade cada vez mais individualizada, onde a religiosidade se pratica à la carte. Um outro vetor, o nacionalismo xenofóbico, igualmente tinha perdido sua força pela aproximação dos grupos conservadores a partidos com orientação econômica liberal, identificados com uma agenda favorável à globalização. O conservadorismo democrático não nega o papel central da ciência, e reconhece a importância das elites do conhecimento associadas a realidade mundana. Não que seja uma convivência fácil ou sem atritos, mas os grupos conservadores democráticos não procuraram deslegitimar ou demonizar os seus opositores.

A nova direita autoritária, em forma diferente em cada país, catalisou diversos mal-estares de vários setores sociais, promovendo um discurso saudosista, utilizando símbolos e pautas religiosas e nacionalistas xenofóbicas, promovendo a imagem de um passado idealizado que foi maculado pela presença de imigrantes, os direitos humanos o feminismo, os artistas, e a globalização. No lugar de procurar modular as transformações sociais, como o faziam os conservadores democráticos, a direita reacionária quer reverter a roda da história. Aliás, uma caraterística comum da direita reacionária é um discurso machista e patriarcal, associado a valorização da força e da violência.

No Brasil, o discurso reacionário apresenta caraterísticas próprias. O tema dos emigrantes, central em boa parte dos movimentos de direita, é irrelevante no Brasil. A globalização no Brasil, onde o protecionismo industrial ainda é grande, não produziu a destruição maciça de empregos, e o racismo, certamente existente, nunca é assumido em forma explicita por nenhuma força política. O que restou para a direita reacionária foi o discurso machista, com afinidades com grupos religiosos que se opõem a agenda feminista e de liberdade de orientação sexual, um discurso nacionalista sem fundamento na realidade econômica ou geopolítica do pais, portanto associado puramente a símbolos sem conteúdo pratico, a não ser tema da Amazônia, e a apologia da violência policial e da posse de armas. Sendo parcos os inimigos, eles tiveram que ser inventados. Foi ressuscitado o cadáver do comunismo, e sendo inexistentes os vivos que se definem como tais, qualquer opositor ao bolsona ismo passou a ser tachado como tal. E não tendo o país nenhum pais inimigo à vista, as redes bolsonaristas se dedicam a divulgar mensagens de ódio de uma país fundamental para a economia brasileira, a China.

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O senhor diz — parece-me que acertadamente — que “a extrema direita redefine os termos de esquerda e direita” a partir de sua própria lógica. Além disso, esquerda e direita, por óbvio, são termos contestáveis, posicionais, conceitos interpretativos por excelência. Como se pode falar em esquerda e direita hoje, se é que podemos, de modo responsável e com um mínimo de rigor analítico?

Esquerda e direita são válidos se aclaramos a que temas eles se referem. No interior da política democrática certamente existem diferenças entre aqueles que consideram que a sociedade, através do sistema tributário, legislação e políticas sociais, deve assegurar serviços sociais universais e condições mínimas de renda para o conjunto da população, e aqueles que procuram limitar ao máximo a intervenção do estado, deixando ao mercado o papel de distribuir a riqueza social. No mundo real, os partidos não se posicionam em polos opostos, e sim dentro de uma variedade de matizes dentro de um espectro que podemos caracterizar como sendo mais à esquerda ou mais à direita, e cujas caraterísticas mudam de acordo com a sociedade. Na Europa, por exemplo, o acesso universal à saúde não é questionada por nenhum partido político, enquanto nos Estados Unidos um sistema de saúde pública ainda não é consensual inclusive no partido mais à esquerda, o Democrata.

Desde uma perspectiva democrática o principal divisor da vida política não é entre direita e esquerda, mas sim entre liberdade e autoritarismo, entre democracia e ditadura. Tanto à direita como à esquerda do espectro ideológico existem tendências autoritárias, e frente a elas a separação entre esquerda e direita deixa de ter sentido. Infelizmente, na cultura política brasileira e latino-americana, tanto à direita como à esquerda, se encontram aqueles dispostos a colocar em segundo lugar sua opção pela democracia, priorizando os temas distributivos.

Finalmente o tema da proteção do meio ambiente ou temas culturais, embaralham ainda mais o abanico político, pois não existe afinidade necessária entre eles e a divisão de direita e esquerda, se bem existem tendências políticas que procuram fazer uma síntese entre elas.

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Mark Lilla sugere que, nas disputas típicas de sociedades plurais, fragmentadas — os “conflitos culturais” de que o senhor fala no livro —, o reacionário larga em vantagem: o passado é irrefutável. O senhor concorda com essa leitura?

Discordo. O passado só é atrativo, para a maioria da população, quando o presente e o futuro deixam de ser promissores, como no momento atual, em que o sentimento de que o progresso, expressado em mobilidade social e melhores condições de vida, entrou em colapso. De fato, um passado idealizado, proclamado pela direita autoritária, pode ser refutado em praticamente em todas as áreas de vida dos brasileiros. Hoje, vivemos muito melhor que décadas atrás. As transformações sociais obviamente implicaram em perdas, para os homens de seu poder e privilégios na estrutura da família, ou para setores de classe média acostumados a serviços domésticos baratos e submissos. Mas são processos contraditórios, pois ninguém com saudades do patriarcalismo deseja que suas filhas ou netas tenham o destino de suas antepassadas, e as pessoas se acostumam a um mundo com serviços mais profissionalizados. Inclusive, se olhamos do ponto de vista de grupos evangélicos, parte dos quais apoiam o presidente, nada teriam a se queixar, pois em poucas décadas passaram de ser uma pequena minoria a representar quase um terço da população. Na realidade, a passagem do tempo representou perdas, materiais ou emocionais, para os grupos de mais idade ou com empregos que foram descartados. Para os mais idosos, o saudosismo é natural, não só pela juventude perdida como pelas transformações de costumes e formas de relacionamento diferentes daquelas em que foram inicialmente socializados. E aqueles que perderam seus empregos e naturalmente têm dificuldades de se reciclar, o passado realmente foi melhor.

O saudosismo como discurso político tem maior atrativo em países com populações mais envelhecidas, e que têm condições de idealizar um passado relativamente prospero, que não é o caso brasileiro. O único saudosismo que tem sentido no Brasil é o prazer lúdico da convivência entre pessoas que pensam diferente, que está sendo destruído por um discurso de ódio e de polarização destrutiva.

No livro, o senhor fala muito sobre o papel das teorias conspiratórias na ascensão e consolidação dessa nova direita, além do uso político das notícias falsas — um cenário que exige “respostas criativas” das sociedades democráticas. Já é possível pensar em algumas dessas respostas ou só há ainda o ponto de interrogação?

A predisposição a aceitar teorias conspiratórias se sustenta em contextos sociais em que os indivíduos não encontram meios de participação cidadã, pela falência dos instrumentos de participação coletiva, gerando sentimento de impotência pessoal. Este sentimento de frustração é captado pelos líderes autoritários, que a traves das fake news denunciam conspirações, geralmente agrupando informações, algumas fantasiadas e outras deturpadas, para culpar indivíduos ou grupos por todos os males que afligem a sociedade.

O papel das teorias conspiratórias é, principalmente, o de procurar responsáveis externos pelos eventuais problemas que o país sofre e, assim, desviar a atenção das dificuldades reais da sociedade. Elas permitem que o líder se desresponsabilize pelos problemas do pais, transferindo a “culpa” a ação e minorias pelos problemas que afligem a sociedade.

As teorias conspiratórias sobredimensionam o poder dos outros, e posiciona o resto da população como uma vítima passiva, sem responsabilidade nem capacidade de influenciar seu destino. Elas promovem um discurso anti-intelectual e antipluralista que substitui o argumento pela difamação, transformando a política em guerra, em que qualquer oposição é tratada como inimigo a serviço de conspirações que desejam destruir a “nação”. Criam um ambiente que se dissemina o medo, e que exige um líder forte que reprima e elimine os “antipátria”.

O que fazer para enfrentar as “teorias conspiratórias”? A resposta deve vir de vários lados. Precisamos de líderes políticos que comuniquem a população os desafios que devem enfrentar, renovando a esperança e o sentido de responsabilidade coletiva pelos destinos da nação. Devemos manter um esforço permanente não só de desmentir as teorias conspiratórias, como de promover o diálogo com os incautos que as viralizam, indicando os motivos subjacentes daqueles que as produzem. E, finalmente, devemos realizar um esforço no sistema educacional, formando habilidades que fortaleçam o pensamento autônomo e crítico.

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Outro problema muito bem apontado pelo senhor é o da desigualdade. O senhor tem visto a articulação, ainda que incipiente, de uma discussão que enfrente o problema de fato, sem rejeitar as premissas do liberalismo democrático?

O projeto mais bem-sucedido para enfrentar o tema da desigualdade tem sido o estado de bem-estar social, que foi promovido pela social-democracia e também pelos partidos social-cristãos. Ele se encontra em crise pelo efeito das transformações sociais que mudaram as estruturas produtivas — dizimando a relevância dos trabalhadores industriais e generalizando formas de trabalho precário —, e as pressões geradas pela globalização, produtiva e financeira, no sentido de reduzir salários e os gastos do estado.

Os exageros do liberalismo econômico exigem que eles sejam temperados pelas demandas democráticas de diminuir a desigualdade social. Acredito que hoje se está formando um consenso neste sentido entre amplos grupos da sociedade. De certa forma, a luta contra a COVID é um símbolo do que deve ser o caminho: em primeiro lugar vem a vida humana.

A sociedade deve recuperar sua capacidade de intervenção nas transformações em curso, não para paralisar ou desconhecer o papel do mercado, mas domesticá-lo. O tema é amplo, mas a guisa de exemplo, a “uberização” do emprego, onde o empregador se apresenta como uma simples plataforma sem responsabilidade sobre os trabalhadores, é socialmente inaceitável e oneroso para a sociedade, que deverá cobrir as necessidades básicas dos que delas dependem para ter um ingresso.

Acredito que, a longo prazo, o problema da desigualdade, associado aos desafios colocados pelas mudanças climáticas e preservação do meio ambiente deverá levar a mudanças civilizatórias, em particular nas formas de consumo e de organização da sociedade.

Nas suas palavras, a análise sociológica é “tanto um exercício para explicar como chegamos ao momento atual quanto para entender aonde nos dirigiremos”. Muito embora o senhor rechace qualquer pretensão de predizer o futuro, pergunto: num cenário de tantas crises, que otimismo ainda nos é possível?

De fato, existem muitos sinais de tormenta no firmamento, mas nossas opções devem ser guiadas pela ética, que não tem nada a ver com pessimismo ou otimismo, que são estados de ânimo. Devemos agir não em função dos presságios, que poderão se cumprir ou não, mas em função do que acreditamos que merece ser defendido. Caso contrário, estaremos sendo irresponsáveis, caindo no derrotismo, ou, pior ainda, no oportunismo que se associa com as forças do mal, que em certos momentos podem ser prevalecentes.

Estado da Arte – ESTADÃO

Bernardo Sorj
Sociólogo brasileiro, professor titular aposentado de Sociologia na UFRJ, diretor do Centro Edelstein e Plataforma Democrática.