Há exatamente 185 anos atrás, na cidade da Bahia, um fato causou grande constrangimento às autoridades. Uma sentença que condenava à morte por enforcamento em praça pública cinco homens negros não pode ser executada segundo determinava o processo, pois nenhum homem, branco ou negro, aceitou o papel de carrasco. Ninguém na cidade da Bahia aceitou ser o verdugo de uma sentença abjeta, ainda que fosse oferecido a qualquer cidadão, mesmo preso ou condenado nas galés, uma polpuda recompensa de 30 mil-réis.
Os cinco homens tiveram sua sentença cumprida por fuzilamento, como homens dignos que eram, frustrando o espetáculo desonroso do enforcamento em praça pública, cujo o objetivo era intimidar as luta dos negros pela liberdade. A revolta não estava apenas com os negros, os que não aceitaram ser cumplices da carnífice e muitos brancos que não admitiam ver heróis condenados a uma morte desonrosa, também se revoltaram. Os condenados haviam lutado na Revolta dos Malês e, guerreiros que eram, deveriam ter uma morte digna.
Esses e outros fatos me surpreenderam quando me debrucei sobre os livros e documentos que contavam em detalhes a Revolta dos Malês para assim elaborar meu último romance, Luiza Mahin (Geracão 2019). A revolta por si só já era surpreendente, afinal não parecia crível que quase mil homens negros vestidos com camisolões brancos e torso na cabeça e armados de facões, navalhas e parnaíbas tomassem a cidade de Salvador por um dia e enfrentassem durante horas os soldados fortemente armados que lhe deram combate cerrado, como se enfrentassem um exército organizado.
Surpreendente também era um certo traço ecumênico na revolta, que viabilizou a junção de negros mulçumanos com aqueles que professavam a religião dos Orixás para juntos formarem um exército cujo objetivo era a libertação dos escravos. Como se não bastasse – e sem falar na força da personagem feminina que liderou a revolta, pelo menos no imaginário do povo – havia outro fato característico: os revoltosos, em sua maioria escravos tratados brutalmente pelos seus donos, tinham todos os motivos para, tomado os principais bairros da cidade, atacar os brancos indiscriminadamente.
E, no entanto, os civis, homens e mulheres brancos, não foram atacados, suas vidas foram preservadas, os revoltosos miravam apenas os seus algozes, a polícia e os batalhões que formavam o braço armado de uma classe dominante cujo único objetivo era sugar o trabalho e a vida dos escravos. Para os malês “white lives matter”.
Ambos os episódios históricos desaguam nas manifestações pela morte brutal de Goerge Floyd que colocou milhares de pessoas nas ruas da América e de vários países do mundo protestando contra a brutalidade da polícia e contra o racismo estrutural que ainda perdura no mundo. E desaguam porque chamou atenção que aqueles que protestavam contra o racismo e a desumanidade com que a polícia trata os afrodescendentes, não eram apenas negros, milhares de jovens brancos se uniram a eles, como que a dizer que não queriam cometer o pecado da omissão ou da conivência como fizeram as gerações que os precederam.
Black Lives Matter é o lema de milhões de negros ao redor do mundo que sempre foram as ruas lutar contra o racismo estrutural enraizado na sociedade e mais enraizado ainda nas estruturas policiais, cuja violência contra os negros é inerente.
Mas o brutal assassinato de George Floyd teve o condão de ampliar o movimento e foi como se um raio de consciência tivesse atingido todos os jovens fazendo-os ver que Black Lives Matter é um movimento de negros e brancos e um imperativo do ser humano se se deseja criar uma sociedade verdadeiramente humanista.
A morte de George Floyd fez o mundo ver que o racismo não é um problema de negros é um problema de todos e a sociedade branca que criou o criou tem responsabilidade na na reparação e na mudança desse quadro. E a carapuça serve para a sociedade branca brasileira, que sempre brandiu a mentira de que o Brasil era uma democracia racial e inoculou o germe do racismo em todas as estruturas republicanas, mas que se tornou simbólica na ação e na violência da polícia.
As gerações que formaram a República brasileira nunca enfrentaram de frente o racismo que está arraigado em nossas instituições e mesmo minha geração, a geração libertária de 1968, que foi às ruas em busca da libertação do homem, deixou a questão racial em segundo plano, assim com deixou a questão ambiental de lado. Mas agora uma nova geração está nas ruas e ela está clamando pela preservação do meio-ambiente e denunciando o que estamos fazendo com o mundo que será deles.
E a morte de George Floyd, que levou milhares de jovens, brancos e negros, às ruas no mundo inteiro, é também um grito dessa geração, que nós supúnhamos alienada, mas que foi às ruas para denunciar a nossa omissão, a nossa conivência com uma sociedade racista, cujo aparato policial e educacional existe para manter esse racismo estrutural. A morte de George Floyd serviu para mostrar que a luta contra o racismo e a opressão não é apenas a luta dos negros secularmente oprimidos, é a luta de negros e brancos em busca de uma sociedade mais justa e inclusiva.
Armando Avena é escritor, jornalista e economista. Membro da Academia de Letras da Bahia e professor da UFBA. Seu livro, Luiza Mahin, foi publicado pela Geração Editorial em 2019 e está na 2ª edição.http://atarde.uol.com.br/
Armando Avena