A vida sofre mudanças na mesma velocidade que as nuvens passam pelo céu. E essa contemplação só é possível se os olhos se voltarem para o além de nós mesmos. Parar algumas atividades cotidianas por alguns instantes se torna uma oportunidade para esse desprendimento. Quando isso acontece, já não há mais dúvidas de que o tempo passa por nós e, também, de que nós passamos e passeamos pelo tempo. Acontece que algumas coisas podem durar mais que outras. E, por esse motivo, elas podem produzir uma sensação de perenidade. É essa sensação que nos leva ao entendimento – que deve ser posto em suspeita – de que haveria algumas regras que regulam a vida. Tais regras é que garantem um status de naturalidade, de normalidade e de comum ao vivido.
Mas o que sabemos realmente de nós e do nosso estar com os outros no mundo até aqui? Podemos dizer que nossas vidas e tudo o que vivemos seguem uma normalidade? A catastrófica pandemia mundial de Covid-19 nos fez perceber que a vida sofre suas mudanças. Dessa vez, a mudança foi brusca, por isso, mais perceptível para todos nós. Tudo isso que estamos vivendo nos faz perguntar sobre a suposta normalidade que vivíamos até aqui. Faz-nos perceber quais regras estavam em jogo para nós e regendo as relações nas nossas sociedades.
Certamente, a normalidade que vivíamos deve ser provocada com sinceridade. A vida não era melhor do que tem sido. Não precisamos ser tão otimistas com relação aos processos e jogos interpessoais em jogo até antes da pandemia. Basta olhar um pouco mais além do que estamos vivendo agora para saber que estávamos, tal como ainda estamos, mergulhados numa “normalidade” de injustiça e desigualdade sociais. O número crescente de pessoas em situações de miséria e pobreza denuncia esse rosto perverso da nossa sociedade. A normalidade vivida era demasiadamente segregadora. A exclusão significou, até então, a inclusão num sistema de menos vida para uma maioria da população. Nesse sistema as pessoas passam fome, não têm acesso ao saneamento básico, carecem de moradia ou moradia digna, enfrentam dificuldades para acessar o sistema de saúde pública, estão suscetíveis ao desemprego e outras vulnerabilidades recorrentes da ausência de renda e de acesso aos bens de consumo.
Para não nos alongarmos nessa contemplação do vivido, basta apenas procurar recordar a “normalidade” naturalizada da misoginia e do machismo e das mulheres vítimas da violência de homens e suas masculinidades tóxicas. É importante recordar os assassinatos e as agressões sofridas por pessoas com sexualidades divergentes da normativa heterossexual em virtude do ódio despertado em intolerantes e pudicos da moral e dos “bons” costumes. Ainda é preciso mais um instante do olhar para recordar o racismo que não para de mostrar que podemos enfrentar diversas tempestades coletivas, mas em condições que subjugam negros e negras ao ponto de provocar uma consciência social de que vidas pretas são menos importantes ou possuem menor valor. O que é de longe uma compreensão anômala para a humanidade.
Ao nos perguntarmos sobre o que seremos individual e socialmente após esse tempo de pandemia, tendo os cientistas descoberto uma vacina ou tratamento eficaz para o vírus que dilacera a todos, mas, sobretudo, os empobrecidos, precisamos não querer e desejar o “novo normal”. Para isso, é preciso denunciar que a “normalidade” que naturalizamos é perversa e contrária à dignidade humana, justamente porque ela se habituou em considerar algumas pessoas, grupos, relações, jogos de poder, o meio ambiente, entre outros, dentro de uma lógica de degradação e morte em benefício de alguns poucos e em detrimento de muitos.
Essa “normalidade” foi amplamente denunciada, já em tempos remotos, por homens e mulheres que enxergavam para além do próprio umbigo e de maneira difusa. O olhar a ser recordado para não cair no esquecimento é o de Jesus Cristo. O olhar de Jesus para seu tempo viu as exclusões, as injustiças e as desigualdades que subjugavam os pequenos e empobrecidos. Por isso mesmo, denunciou, a partir da práxis de um amor promotor da dignidade da vida, os descompassos da gente religiosa e secular que estabelecia uma “normalidade” para manutenção de privilégios injustos que impediram e continuam impedindo que a vida seja maior e o Reino de Deus se torne a medida das nossas relações. Deus nos livre de um “novo normal”, caso ele venha maquiado com a hipocrisia com a qual seguimos acostumados apesar de tantas mudanças.
Tânia da Silva Mayer, Dom Total