Na perspectiva dos movimentos sociais transformadores, são inaceitáveis os discursos e as práticas que afirmam: “precisamos conciliar desenvolvimento com preservação ambiental”, “urge adequar os projetos econômicos mitigando os impactos socioambientais”, “temos que adequar os grandes projetos dentro das normas ambientais”. Isso é uma mentira.

Busca-se dourar a pílula, criando uma fachada de preocupação socioambiental para viabilizar a continuidade da máquina de moer vidas que é o sistema do capital. As megaempresas capitalistas são geridas por executivos que, amarrados no mastro do navio, ouvem e se deleitam com o canto da sereia do capital. De outro lado, seguem os trabalhadores amarrados, (em)pregados em seus postos de trabalho, sem ter outra alternativa de vida, sustentando “uma economia que mata” – expressão do papa Francisco -, um sistema que tritura vidas a troco de quase nada.

Às vezes, sem saber, imerso na ideologia dominante, o capitalista se torna um opressor como Ulisses amarrado no mastro do navio, conforme o canto 12 da Odisseia de Homero: saboreia a sedução do canto das sereias, mas, amarrado no mastro, não pode impedir a engrenagem que o sustenta. Quanto mais o capitalista acumula riquezas, tanto mais é impelido a acumular, gerando consequentemente miséria crescente para a classe trabalhadora e para o campesinato e causando uma imensa devastação ambiental.

Na Encíclica Laudato Si’, o papa Francisco afirma: “A contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e trabalho” (n. 18). O produtivismo, o trabalho por metas, a intensificação do ritmo de modo a produzir o mais rápido possível, a terceirização e a precarização das condições de trabalho estão desumanizando milhões de pessoas.

Aumenta-se assustadoramente o número de adoecimentos por trabalho extenuante. O papa Francisco põe o dedo na ferida: “A poluição afeta a todos, causada pelo transporte, pela fumaça da indústria, pelas descargas de substâncias que contribuem para a acidificação do solo e da água, pelos fertilizantes, inseticidas, fungicidas, pesticidas e agrotóxicos em geral […]. A tecnologia, ligada à finança, é incapaz de ver o mistério das múltiplas reações que existem entre as coisas e, por isso, às vezes resolve um problema criando outros” (Laudato si’, n. 20).

Não é apenas uma questão de incapacidade. A tecnologia não é neutra. Ela está, salvo exceções, subserviente aos interesses dos grandes conglomerados econômicos. Logo, a raiz reside no capital que usa a tecnologia para superexplorar a dignidade da pessoa humana e toda a biodiversidade. A tecnologia resolve um problema, mas cria outras grades, que prenderão muita gente.

Os defensores da “sociedade de mercado” exaltam o crescimento econômico com constante aumento da produção de mercadorias, como se isso fosse o caminho para a felicidade de todos(as). O papa Francisco mostra o que é escondido. Diz ele: “produzem-se anualmente centenas de milhões de toneladas de resíduos altamente tóxicos e radioativos. A Terra, nossa casa única e comum, parece transformar-se cada vez mais em um imenso depósito de lixo” (Laudato si’ n. 21). Ora, quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais concentra riquezas e devasta socioambientalmente o Planeta.

Urge superar a cultura do descartável, construindo uma sociedade sustentável. Francisco alerta que é preciso limitar o uso de bens naturais: “Ainda não se conseguiu adotar um modelo circular de produção que assegure recursos para todos/as e para as gerações futuras e que exige limitar, o mais possível, o uso dos bens não renováveis” (Laudato si’ n. 22).

Precisamos desacelerar o crescimento econômico capitalista, máquina de moer vidas, até paralisá-lo. É hora de admirar e respeitar nossa Casa Comum e todos os seus bens naturais, que não são apenas “recursos naturais”, assim vistos quando reduzidos ao aspecto estritamente econômico.

Com assessoria de cientistas idôneos, o papa Francisco analisa as mudanças climáticas e outras questões conexas. Diz ele: “Estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático […] devido a alta concentração de gases com efeito de estufa (anidrido carbônico, metano, óxido de azoto e outros) (n. 23) […]. O aquecimento influi no ciclo do carbono. Cria um ciclo vicioso que agrava ainda mais a situação e que incidirá sobre a disponibilidade de bens essenciais como a água potável […]. A perda das florestas tropicais piora a situação, pois estas ajudam a mitigar a mudança climática […]. A subida do nível do mar pode criar situações de extrema gravidade, se se considerar que um quarto da população mundial vive à beira-mar” (Laudato si’ n. 24). Que bom que o papa Francisco ecoe esses alertas que vêm sendo feitos por milhares de cientistas e experimentados por bilhões de pessoas no próprio corpo mundo afora!

Está ocorrendo um aumento assustador não apenas de impactos negativos, mas de devastação ambiental. Os atingidos por grandes projetos de mineração, de barragens e de hidrelétricas não são apenas afetados, mas pisados, violentados e massacrados. Os projetos de energia eólica, considerada como energia limpa, estão causando impactos socioambientais irreversíveis em vários estados do Nordeste brasileiro. Escondendo-se por detrás da capa de “combustível limpo”, as grandes empresas da monocultura de cana-de-açúcar devastam biomas, submetem milhares de pessoas a trabalho exaustivo, dizimam nascentes e agridem a saúde de milhões de pessoas com as nuvens de fumaça e fuligem dos canaviais invadindo as cidades e provocando o aumento e agravamento de doenças respiratórias, entre outras consequências negativas.

Anima-nos muito na luta ver o papa Francisco se posicionar, denunciando a privatização das águas e a restrição do seu acesso aos empobrecidos. Diz em alto em bom tom, Francisco: “Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar esse recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado divinizado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos. Este mundo tem uma grave dívida social para com os pobres que não têm acesso à água potável, porque isto é negar-lhes o direito à vida radicado na sua dignidade inalienável” (Laudato si’ n. 30).

Vários movimentos sociais e ambientais denunciam constantemente a destruição dos nossos biomas: o Cerrado, a Amazônia, o Pantanal, os Pampas, a Caatinga e a Mata Atlântica, com a consequente perda de biodiversidade. Francisco também assume esta causa com vigor: “A perda de florestas e bosques implica simultaneamente a perda de espécies que poderiam constituir, no futuro, recursos extremamente importantes não só para a alimentação, mas também para a cura de doenças e vários serviços” (n. 32). “Anualmente, desaparecem milhares de espécies vegetais e animais” (Laudato si’ n. 33).

Há um problema que está na luta cotidiana dos movimentos sociais e que o papa abordou com clareza: os estudos de impactos ambientais dos grandes projetos de interesse do capital, realizados pelas empresas, geralmente são “para inglês ver”. Subestimam drasticamente os impactos sociais, econômicos e ambientais negativos que acontecerão e exaltam os pretensos benefícios “sociais”.

Os critérios definidos para identificar as comunidades direta e indiretamente afetadas são questionáveis e, normalmente são desconsideradas muitas pessoas atingidas sob a cantilena mentirosa que se repete à exaustão: “geraremos muitos empregos e promoveremos desenvolvimento da região”. Dizem, mas não é assim que acontece. Todos nós somos afetados de alguma maneira pelos impactos socioambientais negativos dos grandes projetos econômicos.

Gilvander Moreira, Dom Total