Dependemos muito do testemunho de amigos para contar a nossa própria história, inclusive acrescendo detalhes, pequenos, grandes, engraçados, sórdidos, esquecidos, ou muitas vezes até nos ajudando a exagerá-los. Dependemos da memória das outras pessoas para relembrarmos muitos dos fatos que vivemos. E a cada dia, com tantas perdas, morremos um pouco junto.
De novo mais uma semana triste. Penso que isso está ocorrendo nessa pandemia com cada um, cada pessoa ligada a cada uma dessas quase 80 mil pessoas mortas até agora no país; 600 mil em todo o mundo. Mundo onde praticamente 14 milhões de atingidos nem sabem bem se, quando se salvam, terão sequelas ou quais serão. Cada dia é uma informação nova, não lembro de em meses algo estar sendo tão pesquisado, escarafunchado, e ao mesmo tempo confuso, como esse coronavírus. Nem no caso do HIV que, aliás, continua décadas depois sem cura efetiva, embora os remédios tenham avançado mesmo que muito lentamente.
Cada morte leva um pedaço da gente, e ainda nos surpreende. Como assim, morreu? Descobrimos aí que decididamente não somos imortais.
Mas aí que está: enquanto estamos vivos por aí, temos nossas histórias vistas, testemunhadas, podemos dar até referência, telefone, e-mail, formas de contatos para quem de nós acaso duvide. “Pergunte então ao fulano se não acredita!” – provocamos.
Quando morremos, os registros, a mim parece, são feitos sempre de forma muito mais pobre e reduzida. Isso levando em conta, claro, que tem muita gente que imediatamente vira herói ou anjo, mesmo tendo sido uma pessoa terrível, má (quem pode ser tão sincero?); ou, por outro lado, se o coitado passou a vida na batalha pelo reconhecimento, esse se dá somente nessa hora, como legado moral a seus familiares. E ponto.
Tenho reparado nos obituários, especialmente nos de amigos importantes, personalidades que perdi nos últimos dias – Antonio Bivar, a fotógrafa Vania Toledo, além do radialista José Paulo de Andrade, este não tão próximo, mas tínhamos grande mútua admiração, muitas vezes ele leu meus artigos para seu público na rádio, no Pulo do Gato. Fiquei impressionada com o raso das informações publicadas, todas muito protocolares. Emoção mesmo só achei nas redes sociais, nos casos de convivência colhidos aqui e ali nessa imensa colcha de retalhos.
Não falo de biografia que isso é mais sério, coisa para livros, mas dos causos, das aventuras, das desventuras, até das brigas, porque não? De tudo aquilo que a gente imediatamente recorda ao sentir a morte de alguém com quem de alguma forma se relacionou. E quanto mais se vive, mais destas passagens temos lembranças, e ultimamente com mais facilidade, o registro de fotos.
Escrevo tudo isso porque tenho me sentido “esburacada” com esse momento que leva tantas pessoas com as quais convivi, alguns até muito mais de 40 anos. Estranho admitir que hoje praticamente já não tenho mais por perto quem possa recordar, por exemplo, de histórias de minha infância e adolescência – tenho de fazer isso por conta própria.
E creio que talvez seja importante alertar aos mais jovens sobre essas coisas que se tornam tão sensíveis e visíveis quando o tempo vai passando. Talvez, em tempos tão digitais, tão instantâneos, seja bom guardar com mais cuidado cada momento, até para poder contar mais adiante com orgulho. E, muito importante: dar em vida o reconhecimento, o amor e o carinho devidos.
Admitindo: a cada morte – esse assunto difícil – quem fica, fica mais pobre de suas próprias memórias.
Marli Gonçalves, Dom Total