Este tempo de pandemia e isolamento, com tudo que traz de carga de desolação e distância dos amores diversos, profundos ou ardentes, obriga igualmente a pensar. Há mais tempo para isso, mais solidão, mais silêncio, ambiente fértil onde nascem as grandes iluminações. E tempo há também para escutar os que sabem. Não apenas os cientistas, mas os pensadores e os poetas que nos abrem novas portas do conhecimento e da beleza.

Foi assim que quase 2000 pessoas se conectaram no último dia 22 de junho a uma conferência on line dada pelo cardeal José Tolentino, português da Madeira e responsável pela Biblioteca do Vaticano e pelo Arquivo Apostólico. Era uma multidão virtual, sedenta de beleza e sabedoria, ávida para ouvir as palavras que sairiam da boca desse biblista e poeta, sempre serenas e grávidas de vida.

De tudo que ali aprendi – e foi muito – talvez o que mais retive foi a nova configuração que o cardeal vê para a Igreja: seu deslocamento do templo para a casa. E tal êxodo, em lugar de ser um problema e um obstáculo para o pleno funcionamento da comunidade eclesial, representa uma fantástica oportunidade de reencontrar sua fonte mais pura e suas origens mais genuínas.

Quando o Nazareno foi morto na cruz, uma imensa desolação se apoderou dos discípulos. Muitos entraram em dispersão, não encontrando alívio para sua dor e sua perda. No entanto, a boa nova da Ressurreição deu-lhes força de recomeçar a viver. E esse recomeço, que marca o nascimento dessa comunidade chamada Igreja, foi marcado pela união de todos em situação de extrema fragilidade. Sem conseguir abertura na sinagoga, perseguida pelo poder religioso e político, a comunidade viu-se convidada a abraçar sua própria vulnerabilidade.

E que espaço encontrou para celebrar, expressar, viver profundamente essa situação de ameaça e fraqueza? As casas. Não havia lugar para a recém-nascida comunidade no templo. As casas das famílias passaram a ser esses templos. Hoje, em tempos de igrejas fechadas, ou que vão abrindo aos poucos, às vezes desafiando o perigo da doença e do contágio, os cristãos se viram levados a ter que celebrar em suas casas. Em lugar de ir ao templo celebrar com a assembleia reunida, são convidados a conectar seus computadores ou celulares e a partir dali unir-se sem restrições de fronteiras geográficas, mas ocupando o imenso espaço virtual que a tecnologia hoje abre.

Porém, mais que isso, estão convidados a valorizar o espaço de suas casas e residências e experimentar sua sacralidade. Esse espaço onde a família se reúne, cozinha, lava e passa, come e bebe, conversa, briga, chora, pede perdão, se arrepende, ri, ouve música, vê televisão, esse é o espaço da celebração da fé, da memória subversiva e perigosa de Jesus de Nazaré.

É também o espaço de se suportar mutuamente nas dores e fragilidades nossas de cada dia, que hoje são pão cotidiano de todo mundo, no mundo inteiro, mas especialmente em nosso golpeado e ferido Brasil. Espaço de ensinar às novas gerações de filhos e netos que seus pais e avós erraram muito construindo esse mundo que legamos a eles. E esperar que eles consigam introduzir as mudanças que possam ser realmente transformadoras.

Muitas casas passaram a ser verdadeiras igrejas domésticas. Por isso, não se pode dizer que as igrejas estavam fechadas, porque as casas faziam brilhar em si as notas características de toda comunidade eclesial, listadas no final do capítulo 2 dos Atos dos Apóstolos: eram perseverantes em ouvir o ensinamento dos apóstolos, na comunhão fraterna, na fração do pão e nas orações.

A casa e a família sempre foram igrejas primeiras, domésticas, onde se mama o leite e a fé. Contudo, em tempos de secularização, muito dessas características se foi perdendo e o estilo de vida não contempla mais as possibilidades que havia antes. As pessoas estão tão apressadas, com tanto por fazer… Cada membro da família tem horários diferentes. Quase deixou de existir a refeição em família; cada um com sua bandeja, comia o almoço ou o jantar esquentado no micro-ondas, diante da televisão ou do computador.

O vírus nos trouxe de volta para casa e foi possível olhar nos olhos uns dos outros, ver que ali era nosso lugar eclesial, nossa igreja âncora e primeira. Como diz o cardeal Tolentino: “antes de ser templo, a Igreja foi casa. Jesus saiu do templo e entrou na casa. E aí começou a experiência cristã”.

A casa – oikia em grego – e a família são, hoje, uma grande oportunidade para que os cristãos leigos adquiram verdadeiro protagonismo pastoral no futuro que vem no horizonte pós pandemia.

 

Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e autora de “O mistério e o mundo” (Editora Rocco), entre outros livros.