A semana santa percorre dias inteiros de lembranças. Do passado distante, quando a humanidade acompanhou a dor e a libertação, e do meu passado. Eu, escritor de cotidianos.

Nasci em uma família muita religiosa. Meu pai, invariavelmente, sentava em uma cadeira de balanço, fechava os olhos e agradecia a Deus. Minha mãe conversava com Deus o dia inteiro. E com Maria, a que chorou ao ver o seu filho na cruz. Meus pais já não mais estão. Já são memória e saudade.

Em mim, há pedaços inteiros, de dias inteiros, de vivências iluminadoras de vidas que vivemos juntos. Em mim, moram as semanas santas do interior. O respeito aos dias em que o simbolismo nos faz acompanhar o calvário. No Domingo de Ramos, a entrada triunfal em Jerusalém. Como um rei. Na quinta, a santa ceia, a comunhão, o ensinamento de que o mestre é o servidor. A humildade no lava-pés. Na sexta, a vitória dos mentirosos, dos perversos, dos mesquinhos em busca de poder. Mataram o pregador do amor. Com pregos. Com ódios. Com a irrefutável decisão de não deixar nascer as sementes que germinariam de esperança um novo mundo.

Em mim, mora a Páscoa. A prova de que a vitória dos incorretos é sempre efêmera. A liberdade venceu a escravidão. A vida venceu a morte.

E foi em uma Páscoa que se deu a história, a minha história. Criança ainda, via meu pai laborioso no ofício de ajudar. Construiu casas para velhinhos pobres. Ajudou igrejas, orfanatos, mulheres e homens necessitados. Era um distribuidor de bondades. Eu tentava tecer os meus inícios com os mesmos fios de generosidade. E foi, então, que, em uma Páscoa, pedi a ele que me ajudasse a comprar ovos de chocolate e levar aos velhinhos do asilo. Seu sorriso tão bonito era de aprovação. E foi o que fizemos.

O asilo era perto. Eu ia tanto. Conhecia cada um pelo nome. Gostava de ouvir as histórias que eles tinham para contar. Era o mais importante. Receberam os ovos e me pediram, “Fique aqui com a gente, vamos conversar”. E eu ficava. E eu voava nas palavras lindas, antigas, que eles usavam. E eu não conhecia. Ia repetindo uma a uma. Com um assombro bom de permear os ricos tesouros da língua p ortuguesa.

Nesse asilo, vivia Ermelinda, a professora aposentada que abriu em mim um baú inesgotável de prazer pela literatura, pela contação de histórias, pelas frases que descrevem sentimentos e que, portanto, elevam. Tinha eu por volta dos 7 anos.

As doações de ovos de páscoa se repetiram muitas vezes. Meu pai sorria seu ensinamento que me ensinou sem palavras. Seus dizeres nasciam de seus gestos de amor. Tenho muita saudade do meu pai. E muita gratidão por ensinamentos nascidos da consciência de que é o amor que nos significa o existir.

As perversidades prosseguem no mundo. Continuam mentindo. Continuam matando. Continuam violando os princípios mais necessários de civilidade. Mas a Páscoa também prossegue, desmentindo a vitória dos ódios. A vida é um sopro que se afugenta com gritos de violência e que se aquece com encontros de paz.

Já faz tempo que o tempo da minha infância se foi. Mas essas e outras histórias que moram em mim me dão autorização para prosseguir acreditando no divino se manifestando no humano em gestos puros de amor.

O domingo é o primeiro dia da semana. É o dia inaugurador. Inauguremos um novo jeito de tratar as pessoas. Cada um do seu jeito, mas cada jeito inspirando a humanidade a ser mais humana.

É páscoa. É passagem. Passemos, então, à outra travessia. A travessia que vê, que ouve, que sente, que se compadece com a dor do outro e que estende a mão para caminhar junto. É uma experiência vivificante. Ninguém sai imune de uma entrega de amor. É a sabedoria da antiga canção que dizia “Fica sempre um pouco de perfume, nas mãos que oferecem rosas, nas mãos que sabem ser generosas”.

Feliz Páscoa.

Gabriel Chalita

 

*Crônica originalmente publicada no jornal O Dia